sábado, 16 de abril de 2022

Compreender a Escola da Ponte III


Por 
Rubem Alves

Contei sobre a escola com sempre sonhei, sem imaginar que pudesse existir. Mas existia, em Portugal... Quando a vi, fiquei alegre e repeti, para ela, o que Fernando Pessoa havia dito para uma mulher amada: "Quando te vi, amei-te já muito antes..." 



Gente de boa memória jamais entenderá aquela escola. Para entender é preciso esquecer quase tudo o que sabemos. A sabedoria precisa de esquecimento. Esquecer é livrar-se dos jeitos de ser que se sedimentaram em nós, e que nos levam a crer que as coisas têm de ser do jeito como são. Não. Não é preciso que as coisas continuem a ser do jeito como sempre foram. 

Como são e têm sido as escolas? Que nos diz a memória? A imagem: uma casa, várias salas, crianças separadas em grupos chamados "turmas". Nas salas os professores ensinam saberes. Toca uma campainha. Terminou o tempo da aula. Os professores saem. Outros entram. Começa uma nova aula. Novos saberes são ensinados. O que é que os professores estão fazendo? Estão cumprindo um "programa". "Programa" é um cardápio de saberes organizados em seqüência lógica, estabelecido por uma autoridade superior invisível, que nunca está com as crianças. Os saberes dos cardápio "programa" não são "respostas" às perguntas que as crianças fazem. Por isso as crianças não entendem por que têm de aprender o que lhes está sendo ensinado. Nunca vi uma criança questionar a aprendizagem do falar. Uma criancinha de 8 meses já está doidinha para aprender a falar. Ele vê os grandes falando entre si, falando com elas, sentem que falar é uma coisa divertida e útil, e logo começam a ensaiar a fala, por conta própria. Fazem de conta que estão falando. Balbuciam. Brincam com os sons. E quando conseguem falar a primeira palavra, sentem a alegria dos que a cercam. E vão aprendendo, sem que ninguém lhes diga que elas têm de aprender a falar e sem que o misterioso processo de ensino e aprendizagem da fala esteja submetido a um programa estabelecido por autoridades invisíveis. Elas aprendem a falar porque o falar é parte da vida. 

Nunca ninguém me disse que eu deveria aprender a descascar laranjas. Aprendi porque via o meu pai descascando laranjas com uma mestria ímpar, sem arrebentar a casca e sem ferir a laranja, e eu queria fazer aquilo que ele fazia. Aprendi sem que me fosse ensinado. A arte de descascar laranjas não se encontra em programas de escola. O corpo tem uma precisa filosofia de aprendizagem: ele aprende os saberes que o ajudam a resolver os problemas com que está se defrontando. Os programas são uma violência que se faz com o jeito que o corpo tem de aprender. Não admira que as crianças e adolescentes se revoltem contra aquilo que os programas os obrigam a aprender. Ainda ontem uma amiga me dizia que sua filha, de 10 anos, lhe dizia: "Mãe, por que tenho de ir à escola? As coisas que tenho de aprender não servem para nada. Que me adianta saber o que significa "oxítona"? Prá que serve esta palavra?" A menina sabia mais que aqueles que fizeram os programas. Vamos começar do começo.

Imagine o homem primitivo, exposto à chuva, ao frio, ao vento, ao sol. O corpo sofre. O sofrimento faz pensar: "Preciso de abrigo", ele diz. Aí, forçada pelo sofrimento, a inteligência entra em ação. Pensa para deixar de sofrer. Pensando, conclui: "Uma caverna seria um bom abrigo contra a chuva, o frio, o vento, o sol..." Instruídos pela inteligência os homens procuram uma caverna e passam a morar nela. Resolvido o sofrimento, a inteligência volta a dormir. Mas aí, forçados ou pela fome ou por um grupo armado que lhes toma a caverna, eles são forçados a se mudar para uma planície onde não há cavernas. O corpo volta a sofrer. O sofrimento acorda a inteligência e faz com que ela trabalhe de novo. A solução original não serve mais: não há cavernas. A inteligência pensa e conclui: "É preciso construir uma coisa que faça às vezes de caverna. Essa coisa tem de ter um teto, para proteger do sol e da chuva. Tem de ter paredes, para proteger do vento e do frio. Com que se pode fazer um teto?" A inteligência se põe então a procurar um material que sirva para fazer o teto. Folhas de palmeira? Capim? Pedaços de pau? Mas o teto não flutua no ar. Tem de haver algo que o sustente. Paus fincados? Sim. Mas para fincar um pau é preciso descobrir uma ferramenta para cortar o pau. Depois, uma ferramenta para fazer o buraco na terra. E assim vai a inteligência, inventando ferramentas e técnicas, à medida em que o corpo se defronta com necessidades práticas. A inteligência, entre os esquimós, jamais pensaria uma casa de pau-a-pique. Entre eles não há nem madeira e nem barro. Produziu o iglu. E a inteligência do homem que vive na floresta jamais pensaria um iglu - porque nas florestas não há gelo. Produziu a casa de pau-a-pique. 

A inteligência é essencialmente prática. Está ao serviço da vida. Um exercício fascinante a se fazer com as crianças seria provocá-las para que elas imaginassem o nascimento dos vários objetos que existem numa casa. Todos os objetos, os mais humildes, têm uma história para contar. Que necessidade fez com que se inventassem panelas, facas, vassouras, o fósforo, a lâmpada, as garrafas, o fio dentário?... Quais poderiam ter sido os passos da inteligência, no processo de inventá-los? Quem é capaz de, na fantasia, reconstruir a história da invenção desses objetos, fica mais inteligente. Depois de inventados, eles não precisam ser inventados de novo. Quem inventou passa a possuir a receita para a sua fabricação. E é assim que as gerações mais velhas passam para seus filhos as receitas de técnicas que tornam possível a sobrevivência. Esse é o seu mais valioso testamento: um saber que torna possível viver. As gerações mais novas, assim, são poupadas do trabalho de inventar tudo de novo. E os jovens aprendem com alegria as lições dos mais velhos: porque suas lições os fazem participantes do processo de vida que une a todos. A aprendizagem da linguagem se dá de forma tão eficaz porque a linguagem torna a criança um membro do grupo: ela participa da conversa, fala e os outros ouvem, ri das coisas engraçadas que se dizem. O mesmo pode ser dito da aprendizagem de técnicas: o indiozinho que aprende a fabricar e a usar o arco e a flecha, a construir canoas e a pescar, a andar sem se perder na floresta, a construir ocas, está se tornando num membro do seu grupo, reconhecido por suas habilidades e por sua contribuição à sobrevivência da tribo. O que ele aprende e sabe, faz sentido. Ele sabe o uso dos seus saberes. (A menininha não sabia o uso da palavra "oxítona". Nem eu. Sei o que ela quer dizer. Não sei para que serve. Quando eu escrevo nunca penso em "oxítona". Ninguém que fale a língua, por ignorar o sentido de "oxítona", vai falar "cáfe", ao invés de café, ou "chúle", ao invés de "chulé"... A palavra "oxítona" não me ensina a falar melhor. É, portanto, inútil....) Disse, numa outra crônica, que quero escola retrógrada. Retrógrado quer dizer "que vai para trás". Quero uma escola que vá mais para trás dos "programas" científica e abstratamente elaborados e impostos. Uma escola que compreenda como os saberes são gerados e nascem. Uma escola em que o saber vá nascendo das perguntas que o corpo faz. Uma escola em que o ponto de referência não seja o programa oficial a ser cumprido (inutilmente!), mas o corpo da criança que vive, admira, se encanta, se espanta, pergunta, enfia o dedo, prova com a boca, erra, se machuca, brinca. Uma escola que seja iluminada pelo brilho dos inícios. Mas, repentinamente, desfaz-se o encanto da perda da memória e nos lembramos da pergunta: "Mas, e o programa? Ele é cumprido?" Depois eu respondo.

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