terça-feira, 16 de agosto de 2022

Quem quer ser professor?


Por
José Gabriel, 
in Facebook, 
15/08/2022



(Algumas das ideias deste texto têm subjacente as alterações legislativas recentes que permitem que os detentores de qualquer licenciatura possam exercer a função docente. Ver notícia aqui. )

Foram anos – sobretudo a partir do final dos anos 90 - a agredir e diminuir a profissão, anos em que, para lamber o traseiro aos eleitores tudo foi permitido aos politiqueiros, toda a arrogância analfabeta foi atirada contra quem trabalhou na sua formação científica e pedagógica - a ordem dos termos corresponde mesmo a uma hierarquia.


E, ainda assim, eles, os professores, espalharam-se pelo país, viveram e trabalharam em vilas e cidades onde os seus alunos, na maioria, tinham já mais escolaridade que os pais e geriram os conflitos que essa realidade implica. Eles trabalharam num país em que pouco mais de 1% da população em idade escolar chegou ao Ensino Secundário, em que os níveis de analfabetismo operativo atingiam uma grande percentagem da população – nos anos 70 ultrapassava os 30%.

Eles tiveram as costas largas, de tudo foram acusados e considerados culpados - menos daquilo que realmente fizeram, que foi tirar este país do vil e triste estado de iliteracia funcional em que vivia e ao qual parece querer regressar.

Foram amados e odiados, bajulados e agredidos. Tiveram o apoio e encorajamento de muitos pais e alunos e a hostilidade de outros tantos. De tudo tiveram de retirar alguma coisa de positivo e de educativo, em todos os casos tiveram de racionalizar a sua frustração sob pena de enlouquecer. Não raramente, diminuíram-se a si próprios por excesso de escrúpulo ou insegurança nos eventos que viviam. Por verem excepções transformadas em regra sempre que os garnisés de serviço tudo contaminavam com o preconceito da negatividade.

Tiveram ministros que não teriam habilitações para dar uma aula no Ensino Público, tiveram outros que nunca foram mais que ratos de gabinete ou políticos de aviário, outros ainda que ganharam a sua legitimidade em comentários televisivos de programas de treta. Tiveram alguns, poucos, que realmente cuidaram.


Avisaram, oh como avisaram, que o aviltamento da profissão, a desqualificação científica e desagregação dos programas e do sistema escolar democrático iam afastar os melhores da vocação de professor em todos os níveis de ensino. Viram espalhar por todo o país uma imitação de ensino para a docência, pseudo licenciaturas que desprestigiam o conhecimento, mas favorecem os votos locais, enquanto subfinanciavam as que tudo faziam para manter uma qualidade digna.

Poucas profissões essenciais para o progresso do país foram tão agredidas pelos vários governos como os docentes. O resultado aí está: o governo, borrado de medo com a situação que se desenha a curto prazo, começa - e continuará - a tomar medidas à pressa e, como tal, desastrosas.

Parece que há quem queira recuar aos tempos idos em que Salazar dava a qualquer licenciatura habilitação para disciplinas das quais os graduados sabiam menos que os seus alunos – não estou a exagerar, como os profissionais bem sabem. Bem-vindos ao resultado de décadas de estupidez, eleitoralismo e indigência governativa. Não por causa da democracia, mas apesar dela.

Eis o produto do vosso senso comum sobre os “cursos que não dão para nada”, “ai filha, porque vais para a faculdade de Letras?”. Aí tendes o resultado. Temos a maior percentagem de licenciados em Direito por metro quadrado da Europa, mas se uma escola quer um professor de Grego ou Latim bem pode procurar de vela. De Matemática, só os que para lá foram por amor à arte. De Ciências, tendes o resultado de “ó filho, se queres ir para aí vai para engenharia que sempre ganhas a vida”.

À situação a que chegamos não é estranha a escolha feita pelo poder sobre a gestão da Escolas. Escolheram, em vez de uma gestão democrática com o controlo e ajuda dos pares dentro de cada organização, uma gestão submissa, permeável às pressões dos vários grandes, médios e pequenos poderes, politicamente servil e intelectualmente medíocre. Porquê? Porque os melhores – com honrosas e corajosas excepções - se afastam, por não quererem submeter-se a esta vil tristeza. Isto não é exclusivo do sector do Ensino; veja-se o que se passa na Saúde, nomeadamente na gestão hospitalar.

Chegou, pois, a vossa vez, ó formados na universidade do Grande Coiso, na Escola Ensine Tudo Sem Aprender Nada, ó licenciados em Sociologia do Mobiliário Urbano que sempre sonhastes dar Filosofia e Psicologia. É que reina de novo aquela mentalidade que vos impede de projetar uma ponte ou tratar de um doente mas, para ensinar, qualquer um serve.

Há anos, quando o governo da altura bajulava pedagogos finlandeses – os nossos governos gostam muito dos exemplos “lá de fora” – uma das especialistas finlandesas presentes, teve este desabafo: “Nós temos, de facto, algumas experiências de sucesso; mas o que invejamos aos portugueses é eles terem os professores licenciados”. Pois é. Ou pois era. Mas vai deixar de ser. Ou melhor: os professores até podem ser licenciados, mas de que nos vale ter um engenheiro mecânico, por ilustre e competente que seja na sua profissão, a locionar História ou Literatura Inglesa? - sei que o exemplo é caricatural, mas quem já viveu coisas semelhantes compreende onde quero chegar.

É isto. Voltamos ao tempo dos bacharéis que para tudo serviam por “terem estudos”. Voltamos ao tempo dos Abranhos. A culpa? É dos professores, claro. Não é sempre? ...

Nota: este texto reflete, como penso ser notório, a experiência de um professor do Ensino Secundário. E também sindical e associativa.

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