Por
Nuno Morna
agosto 06, 2025
Quando a propaganda educativa atinge os níveis de Saddam e o fracasso se mascara com tablets
É evidente que só uma criatura moldada no barro mole dos gabinetes governamentais, onde se respira o ar parado dos corredores sem livros e o cheiro a tonner barato, poderia olhar para aqueles quadros com percentagens a escorrer perfeição e declarar, com a solenidade dos que confundem propaganda com pedagogia, que a transição digital melhorou os resultados dos exames nacionais. Melhorou, dizem eles. Como se o sucesso brotasse do toque de um ecrã, como se o conhecimento viesse embutido no alumínio do tablet, como se o raciocínio lógico, a capacidade de interpretação, o espírito crítico se pudessem instalar por bluetooth. Melhorou, e pronto. Não se discute. Não se pensa. Publica-se. Com fotografia, citações emolduradas e aquela euforia de fim-de-semana prolongado nos serviços centrais da Secretaria.
A verdade, claro, está ali diante dos olhos, como uma piada triste mal contada. Cem por cento. Noventa e nove vírgula qualquer coisa. Aprovações em bloco, uma muralha de êxito, um desfile de notas positivas como se de repente tivéssemos entrado num regime de milagre pedagógico. E o mais absurdo é que ninguém se espanta. Ninguém estranha que os resultados de Filosofia, Biologia, Economia ou Física se pareçam mais com os resultados eleitorais de Saddam Hussein do que com a distribuição normal de uma população estudantil minimamente heterogénea. Cem por cento, meu Deus. Cem por cento como nas ditaduras de opereta, onde os mortos votam e os vivos não se atrevem a não aplaudir. Cem por cento como se errar tivesse sido abolido por decreto. Como se a dúvida, a falha, a dificuldade fossem agora fenómenos arqueológicos.
E no centro deste teatro, o senhor Secretário da Educação, que de tão repetidamente entusiasmado com os milagres estatísticos que ele próprio promove, começa perigosamente a parecer-se com Mohammed Saeed al-Sahhaf, o tristemente célebre ministro da propaganda de Saddam, aquele que garantia que o exército americano estava a ser esmagado mesmo enquanto os tanques passavam por trás dele. Aqui, o inimigo é outro: é a realidade, que teima em não coincidir com os gráficos; é a evidência, que insiste em contradizer os discursos; é o estado miserável da literacia funcional que resiste à cosmética das manchetes. Mas como al-Sahhaf, o Secretário prossegue, impávido, a declarar vitórias em todas as frentes, entre colunas de fumo e escombros pedagógicos, como se bastasse dizer que tudo está bem para que tudo estivesse mesmo bem. O ridículo, porém, é que há quem aplauda. E a ignorância oficial tornou-se contagiante.
O problema não está no sucesso. O problema está no exagero. No excesso. Na farsa. Estes resultados não revelam progresso, revelam encenação e encenação terceiro-mundista. E por trás da encenação, o velho vazio de sempre: exames sem rigor, critérios de correcção diluídos, ensino orientado para a repetição automática, para o reconhecimento de padrões, para o papaguear manso que não incomoda. Nenhuma destas notas mede a verdadeira compreensão. Nenhuma destas percentagens diz alguma coisa sobre o futuro. O que estas notas medem é a eficácia do disfarce. E é nisso que nos tornámos: especialistas em disfarces. Em fingir que somos bons. Em montar o espectáculo da excelência sobre os escombros da exigência.
Para que se perceba melhor: é como se o Governo Regional tivesse montado um cenário de teatro em ruínas, mas com cortinas novas. Lá dentro, a estrutura apodrece, os alicerces estão podres, os actores esquecem o texto. Mas como cá fora há luzes bonitas, cartazes reluzentes e comunicados de imprensa escritos por gente que já não distingue uma sala de aula de uma sala de reuniões, toda a gente bate palmas. Só que depois os miúdos saem dali e não sabem preencher um formulário, interpretar uma notícia, escrever uma carta de motivação. E quando chegam à universidade, para os que chegam, os professores têm de reaprender-lhes o básico: como pensar, como escrever, como raciocinar. A verdade é esta: estamos a aprovar por decreto. Estamos a fabricar notas como se fossem senhas de talho. E os alunos, os nossos filhos, os nossos sobrinhos, vão pagar por isso.
Não se trata aqui de um erro de avaliação. Trata-se de uma perversão do princípio educativo. O ensino foi tomado por políticos que precisam de números, não de alunos. De quadros estatísticos, não de pessoas. A introdução dos manuais digitais, esse nome pomposo para um amontoado de PDFs em ecrãs tácteis, foi desde o início mais uma operação de cosmética do que de reforma. E como todas as operações de cosmética, vive do reflexo no espelho, não da substância. Querem que os números fiquem bonitos. Que o relatório chegue a Bruxelas com sorrisos. Que os jornais publiquem em corpo 48 o milagre. Que os jornalistas repitam como papagaios domesticados o milagre da Madeira digital. Que ninguém pergunte nada.
O que sobrou disto tudo foi uma ficção. Uma ficção bem embalada, vendida com os selos da modernidade e da inovação, mas uma ficção. Os alunos continuam sem ler. Continuam sem escrever. Continuam sem saber ligar duas ideias, distinguir uma premissa de uma conclusão, interpretar um texto com mais de três parágrafos. Mas têm tablets. Têm aplicações. Têm gráficos coloridos. E, claro, têm notas. Notas belas, puras, cem por cento aprovados como nas repúblicas onde os ditadores ganham por unanimidade e os cidadãos batem palmas com medo de desaparecer. A diferença é que aqui desaparece a verdade. E desaparece o futuro. E desaparece a dignidade da escola, substituída por este teatro de fachada que se apresenta, com orgulho, como sucesso.
E agora, expliquem isto a uma criança. Expliquem-lhe que estudou, que se esforçou, que aprendeu a pensar, mas que vale o mesmo que quem decorou dois resumos e copiou tudo do colega. Expliquem-lhe que as notas são todas iguais porque é mais fácil fingir que ninguém falha do que enfrentar a vergonha de termos deixado a escola tornar-se um cenário de mentira. E quando essa criança crescer e perceber que foi enganada, que não lhe ensinaram nada de verdade, não se admirem que perca o respeito por tudo o que lhe disseram ser "educação". Porque a verdade, por mais que se disfarce, acaba sempre por regressar. E cobra juros.
NOTA
Agradeço ao Amigo Nuno Morna a autorização para a publicação deste seu artigo. Revejo-me, totalmente, no seu pensamento. Parabéns, Amigo, precisamos, cada vez mais, de vozes lúcidas.
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