segunda-feira, 6 de maio de 2019

NÃO ÀS NOTAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA PARA A MÉDIA DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR


FACTO

Publicado no Expresso: "No Externado Ribadouro quase todos os alunos de nove turmas tiveram 19 valores ou mais a Educação Física. A Inspecção já está a investigar e o tema da inflacção de notas voltou à ordem do dia. Como controlar as classificações nas disciplinas onde não há exames" - Jornalista Isabel Leiria.

COMENTÁRIO

Desde sempre que assumo um posicionamento que, em síntese, se baseia na minha profunda convicção que a disciplina de Educação Física NÃO deve contar para a média de acesso ao ensino superior. O último artigo que escrevi sobre esta matéria foi, salvo erro, a 15 de Junho de 2012. Essa publicação, sublinho, foi a única vez que estive de acordo com o Ministro Nuno Crato, surgiu a propósito das notas deixarem de contar para a média. Agora, os alunos têm mais essa disciplina para "fazer contas". Deixo aqui esse artigo.

SÍNTESE

"Ao contrário de procurar a igualdade com as outras disciplinas, o professor de Educação Desportiva deveria procurar a diferença. Simplesmente porque os graus académicos de formação sendo iguais (Licenciatura, Mestrado e Doutoramento) a sua prática é substancialmente diferente. De resto, não há Jogos Olímpicos, Campeonatos do Mundo ou da Europa de Português, de Ciências ou de História. Mas eles existem no desporto, plenos de beleza estética, de festa, de superação individual e que impelem e influenciam uma prática a qualquer nível. Sendo assim, enquanto uma bola saltitar frente aos olhos de um jovem, jamais alguém precisará de, muitas vezes, “castigar” os alunos com sistemas retrógrados de avaliação, pelo facto da dita bola, volto a ironizar, por um desajeitado pontapé, não ter entrado na baliza, no quadro dos superiores objectivos definidos na complexa Unidade Didáctico-pedagógica. Pois bem, "morra" a Educação Física que hoje constitui uma monumental fraude e viva a Educação Desportiva Curricular.

TEXTO COMPLETO

Provavelmente, a partir do próximo ano lectivo, a nota de Educação Física deixará de contar para a média do aluno no que concerne ao acesso ao ensino superior. A notícia, citando fontes do Ministério da Educação, foi hoje publicada no jornal PÚBLICO. Desde sempre entendi que tal não fazia sentido, pelo que aprovo esta medida. E vou mais longe, nem deveria contar para a média de curso. E cheguei a publicar, em livro, em 2004, exactamente no Ano Europeu da Educação pelo Desporto, definido pela União Europeia. De qualquer forma trata-se de um assunto que levantará muita celeuma entre os profissionais de Educação Física. Deixo aqui uma parte do texto que consta do citado livro publicado.
"Joana [1] teve uma mão cheia de cincos mas, na Educação Física, o nível foi um três “muito fraquinho”; Francisco precisou que outros professores votassem o nível de Educação Física para entrar no quadro de honra da escola; José obteve nível dois porque é um “desajeitado, coitado!”; Fernando, porque é obeso e descoordenado, viu um implacável dois na pauta; Teresa, idem, porque não “não gosta” e conheço o caso da Luísa, estudante de nível cinco, de excelentes predicados nas atitudes e valores, esguia, flexível, de uma grande disponibilidade corporal, expoente no ballet que pratica quase diariamente mas, ironizo eu, certamente porque, em três meses de futebol, não conseguiu acertar com a baliza ou porque teve um teste fraco, também não foi além do três. Ao lado destes casos, entre muitos que me chegam ao conhecimento, há também o daquela turma que, recentemente, registou cerca de 80% de negativas em Educação Física. Ao fim e ao cabo, situações que dão para pensar sobre o fundamentalismo, dito pedagógico, que por aí anda, desvirtuador da vocação primeira desta disciplina curricular e provocador de um enorme rasto de frustração. 
Ora, é por estas e múltiplas outras razões que defendo, há muitos anos, a morte da Educação Física e o nascimento da área curricular denominada por Educação Desportiva que se abrigue, inclusive, num quadro científico mais vasto e sustentado. Razão tem, pois, o Doutor Manuel Sérgio, ele, um filósofo, que melhor que ninguém neste país sabe interpretar e sintetizar as correntes filosóficas, sociais e o pensamento pedagógico ao longo dos tempos, ao assumir que: “(...) nem científica nem pedagogicamente existe qualquer educação de físicos (...) que a expressão Educação Física se acha incrustada numa ambiência social onde o estudo desta matéria não é conhecido (...) e que a Educação Física deve morrer o mais rapidamente possível para surgir em seu lugar uma nova área científica que mereça dos homens de ciência credibilidade, respeito e admiração” (O DESPORTO Madeira, 27.06.03) [2]. 
Trata-se, de facto, de uma luta contra um poderoso lobi corporativista, obsoleto e medíocre, entrincheirado nas universidades e em posições estratégicas de decisão política, que não consegue entender que as respostas encontradas nos anos 30 e melhoradas a partir da década de 70 já não se adequam, por um lado, ao actual conhecimento científico, por outro, às expectativas que o desenvolvimento determinou. Daí que não me espante nem me cause qualquer embaraço que aqueles que consideram que a mudança de paradigma terá de ser operada, sejam muitas vezes visados com graves dislates os quais, penso eu, não são mais do que o estertor de quem perdeu todos os argumentos e, naturalmente, sente que os alunos, paulatinamente, os das universidades e outros de idades mais jovens, estão a lhes voltar as costas, por sentirem que há um mundo novo de possibilidades de prática que não se restringe ao espaço de uma Educação Física bafienta, repetitiva e sem futuro [3]. 
Não compreendem, nem fazem um esforço por compreender, que a razão da existência de professores está hoje determinada pela necessidade de educar através do desporto e que isso implica, necessariamente, a mudança organizacional dos estabelecimentos de ensino, a completa ruptura com os actuais programas, melhor e mais adequada formação universitária dos futuros docentes, formação permanente e a assunção de uma nova mentalidade pedagógica. Metaforicamente, costumo sublinhar, basta de sopa fria, igual para todos e repetidamente servida. Ofereça-se, pois, o doce mais apetecido: a prática educativa do desporto [4], no pleno respeito pelas diferenças de ambos os sexos e pela segmentação de interesses que existem no meio escolar. Não está, portanto, em causa, beliscar a importância desta área obrigatória dos diversos currículos. Pelo contrário, o que está em causa é, através da mudança, ir ao encontro dos jovens, formando-os com princípios e valores para a vida, possibilitando, inclusive, o inegável direito à excelência através do Desporto Escolar [5]. A própria União Europeia percebeu que a via portadora de futuro é esta, não sendo por acaso que 2004 constituiu o “Ano Europeu da Educação pelo Desporto”. 
Ainda sobre as notas ou níveis que se atribuem aos alunos, eu diria que um professor não se afirma (se se trata de uma afirmação no contexto das restantes disciplinas) no seu mister por essa via. Afirma-se pelo estudo, pela capacidade cultural e crítica, pelo conhecimento, pela qualidade, pela capacidade de resposta aos interesses dos educandos, pelas dinâmicas que é capaz de operar no espaço escolar e pelo gosto que desperta, neste caso, por uma prática desportiva regular. Ao contrário de procurar a igualdade com as outras disciplinas, o professor de Educação Desportiva deveria procurar a diferença. Simplesmente porque os graus académicos de formação sendo iguais (Licenciatura, Mestrado e Doutoramento) a sua prática é substancialmente diferente. De resto, não há Jogos Olímpicos, Campeonatos do Mundo ou da Europa de Português, de Ciências ou de História. Mas eles existem no desporto, plenos de beleza estética, de festa, de superação individual e que impelem e influenciam uma prática a qualquer nível. Sendo assim, enquanto uma bola saltitar frente aos olhos de um jovem, jamais alguém precisará de, muitas vezes, “castigar” os alunos com sistemas retrógrados de avaliação, pelo facto da dita bola, volto a ironizar, por um desajeitado pontapé, não ter entrado na baliza, no quadro dos superiores objectivos definidos na complexa Unidade Didáctico-pedagógica. Pois bem, morra a Educação Física [6] que hoje constitui uma monumental fraude e viva a Educação Desportiva Curricular [7]. 
NOTAS DE RODAPÉ:
[1] Todos os nomes são fictícios. 
[2] É no quadro da Ciência da Motricidade Humana que o filósofo fala de “uma nova Renascença, de uma época de construção de novas ciências, que procura encontrar a teoria da prática dos professores de Educação Física. Que (…) há que compreender como Heidegger, que existir humanamente é ser tempo. De facto, tudo é tempo e a Educação Física já teve o seu” – Manuel Sérgio, Da Educação Física à Motricidade Humana (2002). 
[3] (…) Esse estado dá hoje muito que pensar. Com efeito a análise dos dados levantados por várias investigações, bem como as declarações e tomadas de posição de organizações internacionais tornam evidente que esta área disciplinar vive, desde há alguns anos, uma crise sem precedentes na sua história. Esta crise traduz-se num declínio acentuado do seu estatuto, em reduções de tempo no horário escolar, em inadequação de recursos materiais e pessoais, em erosão dos padrões de qualidade e profissionalismo (…) Mas... como configura a Educação Física as suas relações com o corpo e com o desporto? Como é possível que a Educação Física esteja em crise, se o desporto nunca viveu uma fase de tamanha expansão e crescimento e se estamos a assistir a uma conjuntura corporal, a um regresso festivo do corpo trazido pela valorização da imagem, da estética e dos estilos de vida? Como é possível tal crise, se vivemos numa sociedade que nos ensina a valorizar o corpo como nenhuma outra antes dela e se já entrámos numa era que se funda não mais no trabalho, mas antes no lazer e no ócio criativo e em que será cada vez mais nestas referências que se firmará a nova identidade do indivíduo? Estas perguntas encaminham-nos para a necessidade de reconstruir a educação física à luz de novas e actuais premissas. (…) Para manter a sua presença no sistema educativo a área da Educação Física precisa de renovar argumentos que reforcem a sua real importância. E carece de agregar forças capazes de sustentarem que ela é parte genuína e indispensável da educação. Para tanto deverá começar por lançar pontes de cooperação entre a escola e o envolvimento familiar. – Olímpio Bento, Da Educação Física ao Alto Rendimento, pág. 79 e seg.. 
[4] Salienta o Doutor Gustavo Pires no livro Desporto e Política – Paradoxos e Realidades, pág. 352 e 353: “(…) O sistema de valores, os símbolos, a estética, o espaço e a estrutura do tempo são portadores de novas ideias e pensamentos que devem originar outras soluções organizacionais quando se trata de organizar actividades lúdicas, culturais, recreativas e formativas, em ambiente escolar. (…) Defender a Educação Física não é, por isso, insistir nos modelos e nas soluções do passado. Defender a Educação Física é sermos capazes de encontrar soluções de acordo com as realidades do nosso tempo. Numa dinâmica de futuro. E o futuro é o ensino do desporto”. 
[5] No livro Da Educação Física à Motricidade Humana (2002), editado pelo O Desporto Madeira, pode ler-se na pág. 36 a seguinte passagem do Doutor Olímpio Bento: “(…) é, portanto, curial reconstruir esta área à luz de um lema como este: “escolarizar o desporto – desportivizar a escola e a vida”. Mas atenção, como também salienta o Doutor Manuel Sérgio, desportivizar a escola e a vida num projecto que combata uma prática que constitui “uma das grandes alienações do nosso tempo”. Isto é, “para além do desenvolvimento desportivo, é preciso criar um desporto ao serviço do desenvolvimento”. E a Escola, neste aspecto, é determinante essencialmente porque é futuro. 
[6] Do livro Motricidade Humana, do Doutor Manuel Sérgio, pág. 82, cito: “(…) O trabalho prático e teórico (há-de ser sempre as duas coisas simultaneamente) ao nível da motricidade humana, exige uma visão complexa do Homem, da Natureza, da Sociedade e da História; espírito crítico designadamente em relação à própria profissão, descomprometimento com os grandes interesses partidários e empresariais; consciência da dignidade humana; capacidade de intervenção, principalmente através das ideias, na vida política nacional; informação e formação permanentes, quer no plano da preparação científica e pedagógica quer no da articulação prática-teoria; vivacidade de espírito e curiosidade constante em relação ao processo evolutivo da sociedade e da cultura – e não é tudo isto o que se entende por intelectual?”. E adianta: “Um homem é, a meu ver, como um cristal em movimento. Mede-se, acima de tudo, pelo número de faces iluminadas. O mesmo se aplica ao profissional da motricidade humana”. 
[7] Em 1999 foi divulgado um relatório conduzido por K. Hardeman, da Universidade de Manchester, patrocinado pelo Conselho Internacional de Ciências do Desporto e Educação Física e suportado pelo Comité Internacional Olímpico, que teve por objectivo investigar a situação mundial da Educação Física. As respostas ao questionário, aplicado em 126 países, alertou para o facto da Educação Física se encontrar numa profunda crise de identidade e de credibilidade social.
Ilustração: Google Imagens.

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