sexta-feira, 2 de agosto de 2019

As narrativas são "o aparelho digestivo do conhecimento"


Eduardo Sá tem a certeza: “A escola rouba a infância às crianças”. A escola é um novo tipo de trabalho infantil, que não deixa as crianças brincar. 

Por Rita Pimenta 
PÚBLICO
16 de Junho de 2019


No entender do psicólogo, retirámos as crianças do trabalho para lhes devolver a infância e “empanturrámo-las com escola”. Ou seja, “transformámos a escola numa espécie de trabalho infantil e agora não temos crianças que o sejam quando devem ser”.
Por isso, o psicólogo sugere que se transforme “o brincar” em Património Imaterial da Humanidade. E declara: “A escola está a roubar a infância às crianças. A leviandade com que isto se faz é inacreditável. Da parte dos pais, com a melhor das intenções, e da escola, que vive numa distracção sem fim”, seguindo o modelo do século XIX, mas com datashow.
“Tenho medo de que a escola não conheça as crianças”, disse, esperando que consiga “voltar a ser amiga” delas. Disse ainda: “Nunca ouvi falar tanto das crianças e nunca vi que se espatifasse tanto a infância.”

Gostávamos que Trump fosse só uma personagem…

Provocatório e irónico, repete uma ideia já transmitida noutros fóruns, a de que “as histórias fazem mal às crianças”, porque “trazem personagens em relação às quais nós não sabemos quem são os pais, não têm nomes de família nem um currículo que as justifique”.
Mais: elas “correm o risco de acreditar que as personagens são tão reais, como, sei lá!, o Presidente Trump, que nós gostávamos que fosse só uma personagem de uma história… de classe B”.
Este talvez tenha sido o momento em que arrancou a gargalhada mais sonora da sala do Teatro-Cine de Pombal, só competindo com a altura em que, já no período das questões, sugeriu outro item para Património da Humanidade, “o esganiçar das mães”.
O também escritor recordou um inquérito aos adolescentes norte-americanos sobre quem mais influenciou o seu crescimento. Entre as respostas, houve quem se referisse a presidentes dos EUA, a Deus, ao Pai Natal, mas também a inúmeras personagens das histórias. “A única circunstância em que os pais [norte-americanos] contam histórias mais ou menos a sério é no Natal.” E os miúdos fazem-lhes “o favor de fingir que acreditam”.

Crianças estúpidas (mas doutoradas)

Eduardo Sá não tem dúvidas de que “as crianças que não sabem contar histórias e que não escutam histórias são crianças que não aprendem a pensar”, porque as narrativas “são o aparelho digestivo do conhecimento”.
Se não conviverem com histórias, acredita, “mesmo que venham a ser mestradas e doutoradas, são crianças estúpidas”. Já que “as histórias nos permitem descodificar sentimentos, perceber aquilo que vai do mistério à descoberta”. E lembra que “todas são de encantar, porque o encantamento é a experiência de comunhão entre pessoas”.
Por isso afirma: “Os livros de histórias são os melhores manuais ao longo da vida.” Mas não há pressa em que aprendam muito cedo a identificar as letras. Pede mesmo que nos infantários e creches se afixe uma placa à porta: “É proibido aprender a ler.”

O psicólogo afirma que “as crianças vivem empanturradas de conhecimentos” e que “não lhes damos tempo para pensar através das histórias”. Falta-lhes “tempo livre”, quando o têm, “criam personagens, imaginam, põem problemas, resolvem-nos, colocam hipóteses e são expeditas”.

Está convicto de que “uma história ensina a conhecer, a decifrar e acaba por nos levar a perceber que conhecer é sempre reconhecer”. E não aceita “cruzadas contra as histórias violentas”, exemplificando: “Como se a história da Heidi fosse suave ou a do Bambi, que perdeu a mãe, fosse uma coisa insignificante.”
Diz que se trata de “vender um mundo enviesado” e culpa os psicólogos: “Aí entra o autoconceito, a auto-estima, o ‘ama-te a ti próprio’, o optimismo acima de todas as coisas, mas um optimismo que não é verdadeiro.”
Para ele, “as histórias devolvem-nos à verdade, é aquilo que nos permite religar o mundo”. E recorre à origem da palavra portuguesa “religar”, dizendo que foi ela que originou a palavra “religião”.
“As histórias têm uma dimensão absolutamente semelhante à da religião porque nos devolvem ao indispensável, porque nos põem em contacto com o essencial, porque nos levam a perceber que somos transformados quando lidamos com a realidade olhos nos olhos, porque nos levam a descobrir que nunca somos felizes sozinhos”, diz. E acrescenta: “Tudo o que nos parecia opaco e mais ou menos incompreensível se torna tão simples, tão simples, tão simples.”
Para concluir, disse o professor: “O segredo de cada história é termos ao nosso lado alguém capaz de nos escutar com o coração e de fazer aquilo que as histórias fazem como mais ninguém. Quando são muito minuciosas, tocam-nos tão dentro de nós que depois, convictamente, mesmo quando somos crescidos, acreditamos que aquela história foi escrita especialmente para nós. Esta capacidade única de nos tornar importantes… apesar de sermos insignificantes perante o tamanho do universo.”
Mensagem final e amplamente aplaudida: “Deixem-se de histórias e contem histórias.”
Animação e imaginação no jardim

NOTA
Esta edição teve início a 13 de Junho e contou com os convidados: Ana Mourato, Andreia Nunes, Cristina Taquelim, Eduardo Vera-Cruz Pinto, Elsa Serra, Helena Zália, Mafalda Milhões, Maria Teresa Meireles, José Saro, Luís Carmelo, Rachel Caiano, Rita Moriés, Rosa Mendes (Portugal), Rodolfo Castro (Argentina), André Neves, Lúcia Fidalgo e Tâmara Bezerra (Brasil), Eva Mejuto e Catherine L’Ecuyer (Espanha). E ainda: Trovadoras Itinerantes, La Luna – Compañia de Cuentos e Cleva, Coro de Leitura em Voz Alta de Alcochete.

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