terça-feira, 8 de setembro de 2020

Novamente a escola - Apenas uma despretensiosa reflexão


Há muito que me invade o pensamento: em todo o actual "ciclo básico", qual a razão da existência de ciclos (1º, 2º e 3º)? Depois, qual a razão substantiva para uma divisão por turmas?


Norteia-me o pressuposto de provocar o debate. Só o debate inteligente, sério e profundo é capaz de produzir mudança. E são tantos os que para isso podem contribuir. 

Ainda ontem li, no Dnotícias, com muito entusiasmo, pela beleza e qualidade do texto, a crónica do meu amigo Nuno Morna, que trouxe à colação uma série de artigos publicados pelo Le Monde sobre o tema "Le courage de la nuance". Refere no seu texto uma frase de Albert Camus: "Próximos da cegueira devido à polémica, deixamos de viver entre homens, mas num mundo de silhuetas. (...) Abafamos no meio das pessoas que pensam ter a razão absoluta". É isso. E aplica-se em múltiplos campos do debate. Também na escola, onde o aluno não é mais do que uma silhueta. Mas aquela frase fez-me recordar o que li em John Stuart Mill (1859): "A recusa em escutar uma opinião porque se tem a certeza que é falsa, é supor que a sua certeza é a mesma coisa que certeza absoluta". De facto vivemos um mundo onde alguns julgam ser portadores da verdade. Então, políticos, valha-nos Deus! E o que é para eles a verdade? Talvez o comodismo da eleição seguinte, não a geração seguinte. Ora, este posicionamento que deixo para debate, constitui a minha opinião. Só isso. Uma opinião ou uma convicção aberta à comunidade, depois de experiências e muitas leituras.

Começo por questionar a razão da existência de ciclos de estudo? Fará algum sentido, na aprendizagem básica, dividi-la em 1º, 2º e 3º ciclos? O assunto não é novo, eu sei, e até o Conselho Nacional de Educação já sobre este assunto se pronunciou, embora de forma ténue e muito cautelosa. O problema é, portanto, político. E como é político e a comunidade pouco se rala com os assuntos da educação, o seu debate não é considerado prioritário. Fica pela estúpida normalidade de uma enervante centralização do pensamento e da práxis.

Ora bem, quando se acaba com qualquer coisa que faz parte da nossa organização social e que se intuiu como certa, obviamente que se deseja uma outra que se enquadre na necessidade de uma nova resposta que seja amplamente compreendida. Partamos desta imagem: o professor e o aluno dos séculos XIX/XX estavam confrontados com a "sala de aula", com as carteiras normalmente individuais e alinhadas, com a secretária do professor, com o quadro, com os mapas, com o giz, com o silêncio e até com a régua do castigo. O mundo estava confinado à sala e ao pensamento da época. O aluno do século XXI está confrontado não com a "sala de aula", mas com o planeta e com fortíssimas fontes de informação que circulam e o envolvem a todo o momento através da tecnologia. Dois mundos completamente diferentes. E a pergunta é, como encaixar o mundo de hoje nos cubículos e nas convenções de ontem?

Não é possível. Uma escola fechada sobre si própria, que não interage com o mundo, que não deita abaixo os seus muros, que se circunscreve aos programas, aos testes e aos exames, em uma falsa meritocracia, é uma escola condenada, onde o prazer da curiosidade não existe. Quero eu dizer com isto que a aprendizagem é um continuum interligado, de invenção e reinvenção diária e de descoberta e fortalecimento da autonomia individual. A aprendizagem, mais do que um "conhecimento" pontual com a preocupação do teste de avaliação (normalmente, logo esquecido), deve assentar na abrangência da vida, da cultura, da plena formação do ser, porque a escola é formada pelas pessoas que lá convergem e que transportam interesses e sonhos. 

É pois pobre, muito pobre, chega a ser ridículo, cumprir o currículo, centrando a atenção, quase exclusiva, no domínio cognitivo. A vida é muito mais do que isso, do que disciplinas desconexas e assentes em uma segmentação por patamares. Existem outros domínios extremamente preocupantes que não podem ser ignorados: a origem dos alunos, a questão social, económica, cultural e o concomitante domínio emocional. Um fato de tamanho único, compreende-se que poderá assentar bem em uns poucos, mas muito mal na maioria. O que é gerador de infelicidade e de abandono. O insucesso passa a ser, e é, a marca indelével do actual sistema. Infelizmente, a escola está longe de conduzir à felicidade como não tem conduzido à plena construção do SER. 

Portanto, esse continuum devidamente interligado, na incessante busca de um conhecimento alargado, não se constrói com escolas sobredimensionadas (1.000, 1.500, 2.000 e até 2.500 alunos), currículos restritivos e com programas pensados por adultos, em uma centralização que chega a ser intelectualmente obscena, programas sempre acrescentados de mais qualquer coisita, oferecendo boa guarida às editoras, à custa de milhões que saem das algibeiras dos pais e dos cofres públicos. O Estado apenas deve ser o moderador (fiscalizador, também) e, em poucas páginas, definir um conjunto de competências a atingir no final do percurso básico. O resto é à escola, à sua comunidade educativa, à sua autonomia, que deverá pertencer a definição dos caminhos para lá chegar. Convenhamos que não existem duas escolas iguais em todas as áreas e domínios de análise, pelo que é um disparate tratar de forma igual o que é diferente. 

Esse continuum de aprendizagens constrói-se com um novo paradigma organizacional e PEDAGÓGICO. Mas como (?) quase oiço a interrogação de quem me lê. Construindo, é a resposta. Colocando em causa o velho sistema e não copiando ou transferindo experiências já realizadas. Essas apenas poderão servir de inspiração. Para além da não existência de ciclos, não não vislumbro qualquer interesse na existência de turmas ou na separação por idades. Da mesma forma que há famílias com crianças de diferentes idades que coabitam no processo de aculturação e aprendizagens diversas no seio onde se inserem. Trata-se de ver a escola segundo um ângulo diferente que rejeita o "modelo" convencional. Não existe uma resposta, mas várias. Essa postura exige que todos, refiro-me à comunidade educativa, não parem de aprender. O comodismo faz sofrer e mata. Que o digam os educadores. É nesta construção que o professor, mediador da aprendizagem, se torna uma peça fundamental. Não fazem pois sentido a existência de disciplinas, mas sim projectos onde cabem e disparam todos os conhecimentos. 

Um simples exemplo: uma garrafa de vinho como projecto de estudo. Ali acomodam-se a Geografia, a História, a Geologia, o Português, a Química, a Biologia, a Economia, várias outras indústrias, a música, eu sei lá... o que é possível organizar, em famílias de alunos (grupos), o estudo, em conjunto, sob a mediatização dos professores! E quem fala de uma garrafa de vinho, obviamente que pode enunciar muitas centenas de projectos que fogem à peregrina ideia de uma escola de espaços fechados, com disciplinas e patamares de aprendizagem. E com faltas! Tudo está interligado e tudo deve ser interpretado como um desafio. A escolha está entre uma atitude passiva (velha escola) e uma atitude activa (nova escola). É a sociedade que o exige. Se não fosse trágico, daria uma gargalhada com a recente polémica em redor da disciplina "Cidadania e Desenvolvimento". Então as questões da cidadania não são transversais na aprendizagem e trazidas a todo o momento para a formação? Ou dela querem fazer mais uma segmentação sujeita, até, a avaliação e perda de ano? É paranóico o que estamos a assistir.

Finalmente, não deixa de ser curioso que a VIDA real, o mundo laboral, cada vez mais pede trabalho em equipa, isto é, o êxito de uma empresa está directamente proporcional ao sentido de grupo e de pertença. Porém, a escola, no decorrer da formação básica (e não só), fechou-se na sua torre de marfim, como instituição que promove o individualismo, desde as primeiras idades até ao acesso ao superior. É cada um por si. Que raio de paradoxo é este entre a escola e a vida que pede competências! Deixem-se fecundar pelas ciências.

Ilustração: Google Imagens. 

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