quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Estar no pré-escolar com seis anos é um fenómeno que não pára de subir


Quando as aulas começaram no último ano lectivo que foi “normal” (2018/2019), estavam inscritos nas escolas 93.497 alunos do ensino básico e mais 51.801 do secundário que se encontravam em atraso no seu percurso escolar. Neste universo figuravam 11.242 crianças que estavam no 1.º ano de escolaridade, o que correspondia a 13% do total de inscritos. Na prática, isto quer dizer que estes alunos tinham mais de seis anos, que é a idade apontada como “normal” para a frequência do 1.º ano.



É o que mostram os dados divulgados pela Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) no seu último Perfil do Aluno, no caso relativo ao ano lectivo de 2018/2019. Mas como no 1.º ciclo só podem existir chumbos a partir do 2.º ano, a que se deverá então este desfasamento etário? “A proporção dos que ficam na educação pré-escolar com seis anos de idade tem subido muito”, justifica a investigadora e directora do Departamento de Sociologia do ISCTE-IUL, Teresa Seabra.

Mais concretamente, frisa, duplicou nos últimos anos: tendo como universo as estimativas do Instituto Nacional de Estatística quanto ao número de crianças com seis anos residentes em Portugal, a proporção de inscritos no pré-escolar nesta idade passou de 5,7% em 2013/2014 para 12% em 2018/2019. Em números absolutos, a dimensão é esta: subiu de 5229 para um recorde de 10.212. 



Para Teresa Seabra, está é a razão pela qual a chamada taxa real de escolarização tem estado a cair no 1.º ciclo. Este indicador, que tem sido utilizado como uma das medidas de sucesso dos sistemas educativos, relaciona o número de alunos que estão matriculados num determinado ciclo de estudo, em idade normal de frequência, com a população residente dos mesmos níveis etários.

Utilizando esta relação percentual constata-se, por exemplo, que em 2018/2019, último ano com dados publicados, estavam inscritas no 1.º ciclo (1.º ao 4.º ano) 95,8% das crianças residentes em Portugal com idades entre os seis e os nove anos, que é o intervalo apontado como sendo o de “frequência normal” para este nível de ensino.

Nos últimos anos esta proporção oscilou entre 96,1% e 95,4%, depois de ter estado mais de uma década nos 100%. “A taxa baixa, sobretudo, por ficarem alunos de seis anos (considerada a idade normal de frequência do 1.º ano) no pré-escolar”, insiste Teresa Seabra.

E isto acontece porquê? “Creio que o aumento do número de famílias que optam por matricular os seus filhos no 1.º ciclo um pouco mais tarde se poderá relacionar com o crescendo da percepção social de que a vida escolar é muito exigente, a consciência de que brincar é muito importante para o desenvolvimento das crianças e, talvez, também como uma forma de indirectamente assegurar um aumento da probabilidade do sucesso escolar na escolaridade básica”, sugere Teresa Seabra, ressalvando que estas são “apenas algumas hipóteses de trabalho”, já que não existe investigação que se conheça sobre este tema.

A investigadora da Universidade Nova de Lisboa (UNL), Liliana Pascueiro, que tem trabalhado com várias escolas, com aponta no mesmo sentido: “A transição para o 1.º ano começa progressivamente a ser entendida não como uma questão administrativa dependente do ano e mês de nascimento da criança, mas sim da posse de competências essenciais para a integração no 1º ciclo.” A investigadora da UNL lembra, a propósito, que uma das razões mais comuns para os pais pedirem o adiamento da entrada dos filhos no 1.º ciclo se prende com o que consideram ser a “imaturidade das crianças”.


Alunos que ficam para trás

A frequência da educação pré-escolar passou a ser identificada, em muitos estudos internacionais, como um preditor de sucesso no futuro escolar dos alunos. O mesmo já não acontece com as retenções. E, para Liliana Pascueiro, esta é a principal razão por detrás da queda da taxa real de escolarização no 1.º ciclo: “Há uma política de retenção que continua enraizada em franjas populacionais, não só da classe docente, como dos próprios pais e encarregados de educação, que consideram o transitar para o ano seguinte com avaliações menos positivas como uma política de facilitismo da instituição e de injustiça para com os demais colegas de turma.”

No 1.º ciclo, os alunos só podem ser chumbados a partir do 2.º ano, quando terão em média sete anos. Apesar das taxas de retenção terem atingido em seus valores mais baixos de sempre, quando o ano lectivo de 2018/2019 terminou estavam chumbados 4523 alunos que frequentavam o 2.º ano, o que significa 4,7% do total. No conjunto do 1.º ciclo reprovaram 7408 alunos.

O 2.º ano de escolaridade é um dos três em que mais estudantes chumbam. “Os agentes intervenientes em contexto escolar (escola, pais, comunidade científica e demais figuras de destaque no panorama educativo) têm o dever de promover espaços de reflexão e esclarecimento sobre as estratégias escolares e a forma como os alunos são acompanhados”, defende Liliana Pascueiro. E também “deve ser tido em conta o efeito da retenção no percurso escolar futuro da criança, ponderando-se aspectos positivos e negativos de tal procedimento, nomeadamente face à real aquisição de conhecimentos e aos efeitos nefastos da retenção, particularmente no efeito cumulativo que esta origina ao longo do processo educativo”, alerta.

Os números falam por si. O desfasamento etário por ano de escolaridade não pára de crescer ao longo dos anos de escolaridade, começando por afectar 18,1% dos alunos inscritos no 2.º ano (17.399) e atingindo 30,7% no 12.º ano (18.815).

Milhares fora da escolaridade obrigatória

Por nível de ensino, e tendo em conta a taxa real de escolarização, tal é responsável, em grande parte, por esta proporção ser de apenas 82,5% no ensino secundário, quando a escolaridade obrigatória se alargou até ao 12.º ano há já quase uma década. A escolaridade obrigatória vai até ao 12.º ano desde que os alunos não tenham excedido os 18 anos, passando por isso a serem considerados adultos e podendo ser deslocados para o ensino nocturno, entre outras consequências.

Teresa Seabra previne que “os dados disponíveis não permitem discriminar” qual o peso do “insucesso e do abandono escolar” nas razões que levam alunos entre os 15 e os 17 anos a não serem encontrados no ensino secundário, sendo esta a faixa etária “normal” de frequência deste nível de ensino.

No ensino secundário, parte do insucesso escolar fica a dever-se a escolhas que podem não adequar-se ao perfil dos jovens, refere, por seu lado, a investigadora da UNL. “É um momento de indecisão que, para alguns alunos, se traduzirá em percursos escolares pautados pelo desinteresse e desmotivação, e para outros de reorientação das suas escolhas.” Por isso, Liliana Pascueiro adianta que, “embora os serviços de orientação escolar e profissional prestem um serviço notório neste campo, talvez seja ainda necessária uma melhor articulação entre técnicos, famílias, alunos e rede escolar ao longo do percurso escolar das crianças e jovens para que este momento de decisão seja tomado em consciência e com a informação necessária”.

Fonte: Público

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