quarta-feira, 20 de julho de 2022

OA e AO, Angola, Brasil e a “querela” interminável


Por
Nuno Pacheco
07.07.2022

Além dos erros técnicos que traz e propagou, o Acordo Ortográfico é de muitíssimo duvidosa legalidade. A OA resiste ao AO? Tem razões para isso.



Já lá vão bem mais de trinta anos desde que o saudoso filólogo José Pedro Machado (1914-2005) escreveu, no Jornal do Fundão, esta frase: “[A ortografia] deixou de ser problema científico para se tornar político e bem sabemos o que acontece quando em questões científicas os cientistas dão (ou têm de dar) lugar aos políticos…” O que era verdade, à data, tornou-se profético com o tempo. O artigo citado e outros cinco que se lhe seguiram foram publicados ainda em 1986, em Setembro, num opúsculo intitulado A Propósito da Ortografia Portuguesa. Pelo que sabemos hoje, nenhum dos políticos que quiseram à força ser “cientistas” o leu.

Vem isto a propósito de três declarações recentes acerca do malfadado Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), que aliás estava em acesa discussão quando José Pedro Machado escreveu tais textos. A primeira foi do ministro da Cultura. De visita a Luanda, em Maio, para participar no Dia Mundial da Língua Portuguesa, Pedro Adão e Silva disse, em síntese, isto: “Não está em cima da mesa” a revisão do acordo; a matéria em causa não depende do seu ministério, mas não se coibiu de dizer que a avaliação que faz do acordo “é positiva”, adicionando-lhe adjectivos como “factor de inclusão” ou “factor que permite combater as desigualdades” (!!??); por fim, numa pérola de retórica que há-de perdurar, fez esta declaração: “Temos sempre uma língua viva, dizemos que é a língua de Luís de Camões. O português que falamos hoje tem muito pouco a ver com o que era falado por Luís de Camões, a ortografia d’Os Lusíadas tem aspectos que não são os que nós consideramos a norma” [sic]. Ainda assim, enalteceu o português de Angola, dizendo que “tem uma riqueza, uma diversidade e uma variedade e até uma espécie de modernidade que é muito positiva para o português”. Curiosamente, o português de Angola, com tudo o que de novo Angola lhe dá, é ainda, na escrita, o português que por cá foi dado como “morto”, o de 1945. Porque Angola continua avessa a ratificar o AO90.

A segunda veio do ex-deputado (PCP, PS) e professor universitário Vital Moreira, que no blogue Causa Nossa veio zurzir na OA por não cumprir o AO. Parece sopa de letras, mas não é. Vital acusa a Ordem dos Advogados de não cumprir o Acordo Ortográfico, depois de ele ter descoberto (tardiamente, já que a opção é antiga) que a OA escreve no seu boletim, logo na abertura: “Esta publicação não adopta o novo Acordo Ortográfico. A Ordem dos Advogados optou, no entanto, por deixar ao critério dos diversos autores a adopção do Acordo.” Para Vital, configura “uma inadmissível provocação esta recusa da ortografia oficial da República”, pelo que, imagina-se, o Estado devia irromper pela porta da Ordem dentro com “inspetores”, “corretores” ortográficos e talvez as obras completas de Malaca Casteleiro e Evanildo Bechara. “Era o que faltava!”, intitula. “Por que desconhecido privilégio se julga a OA acima da lei?”.

Por fim, de visita ao Brasil, foi a vez do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa (que em tempos idos, como cidadão, foi um dos mil subscritores do Manifesto “Nós não concordamos”, anti-AO9O, que em 1991 foi publicado em dupla página no jornal O Independente) dar um ar da sua graça nesta matéria, dizendo publicamente isto (vale a pena citá-lo na íntegra): “A solução a que eu cheguei foi essa: o acordo é o que é, é adoptado por quem é adoptado. Se há pequenos retoques a fazer porque a prática mostrou que eram lógicos, mesmo nos países que adoptaram, que se faça cientificamente. Mas o todo foi tão complexo de atingir e já está a ser tão grande a edição, que não vale a pena manter uma querela quando a edição já é tão difícil nestes dias”.


Comecemos por Marcelo. Numa coisa ele está certo: “o acordo é o que é, é adoptado por quem é adoptado”. Quanto aos “retoques” que ele sugere que se façam “cientificamente”, já veio o ministro da Cultura (que até diz não ser responsável na matéria) garantir que não há retoques nenhuns (“não está em cima da mesa”), tal como já haviam dito Malaca e os seus aliados. Há erros, sim. Emendá-los? Nunca! É extraordinário que numa língua onde a ortografia como “lei” só existe desde 1911 (Os Lusíadas datam de 1572, senhor ministro, e a Malaca de Camões era bem diferente do Malaca que nos coube), a discussão em torno do tema ainda seja tão acesa. Só que há razões para isso e não são uma simples “querela”, senhor Presidente. É que, como bem saberá, o AO90, além de todos os erros técnicos que traz e propagou, prejudiciais a Portugal, Brasil, Áfricas e Orientes, é de muitíssimo duvidosa legalidade, como aqui se demonstrou em vários textos ao longo dos anos. A OA resiste ao AO? Tem razões para isso. Temos todos.

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