sábado, 26 de agosto de 2023

O conhecimento e a subjectividade das notas escolares

 

Confunde-se o "conhecimento" com "notas escolares" conseguidas através de uma qualquer avaliação. E uma coisa e outra não são compagináveis em todas as suas dimensões. A vida precisa de conhecimento e dispensa o excessivo e frágil foco nas notas (classificação)! O empregador pergunta: "o que sabe fazer" e não a "classificação" que teve na disciplina Y. Note-se que não estou a colocar em causa a avaliação, mas sim as variáveis do processo que conduzem a aprender melhor. Genericamente, salvaguardando as excepções, o que designam por "bom aluno" é aquele que, perante um determinado programa curricular, repete o que lhe foi transmitido pelo docente, o qual, por sua vez, cumpre o que se encontra espelhado no manual. Ora, por essa via, raramente existe uma conexão directa com o conhecimento intelectual, muito menos com o conhecimento científico.



Esta escola oferecida aos portugueses não possibilita o questionamento da própria realidade e não estimula a criatividade nas ideias e conceitos. Trata-se, por isso, de uma aprendizagem que parte, fundamentalmente, do professor e não do aluno. Quase tudo se apresenta repetitivo e estático, cansativo e constrangedor para professores e alunos. 

Aos professores pedem-lhes que elaborem, cumpram as meticulosas "planificações das unidades didácticas" e debitem, escrevam muitos relatórios do extenso e anacrónico processo burocrático e, finalmente, atribuam notas; aos alunos, o sistema preocupa-se em apreciar os dóceis, serenos, não desestabilizadores, por ser mais fácil direccioná-los, desde as primeiras idades, não para a sabedoria, mas para a resposta previamente entendida como certa. Esta lógica de funcionamento diverge de uma aprendizagem consistente, porque mata a curiosidade, não assenta no pensamento, no conhecimento e busca dos porquês, na interpretação das variáveis dos processos, compreendendo-os e favorecendo a transferência para novas situações.

E porquê? Porque a escola que deveria partir do pressuposto da complexidade, continua a preferir uma espécie de prato único, tipo "bife, batata frita e ovo a cavalo" que de tanto engolir causa enfastio, tédio, desinteresse e até rejeição. O que isto significa é que, no mundo que estamos a viver, a aprendizagem, desde início, não deve ser previsível no quadro de uma estrutura clássica próxima do pensamento "industrial". Porque a escola não deve ser entendida como uma fábrica. É um erro admitir que a tradicional segmentação (fragmentação) por disciplinas, mais tarde, as partes se unam no todo. A cognição impõe a opção pela dialéctica, pela capacidade de refutar o que é apresentado como produto acabado. Por aí existe aprendizagem significativa, simplesmente porque as perguntas do aluno devem preceder a resposta constante no manual. Ora, sistema que mata a pergunta é um sistema condenado; sistema que encurrala o aluno, direccionando-o para o que o adulto entende, limita muitas vezes, definitivamente, o conhecimento portador de futuro.


Neste pressuposto a questão parece-me óbvia: que interesse terá a resposta inserta no manual, digital ou não, quando ela não assenta no jogo da curiosidade, da observação e da descoberta? Ou, quando o centro da atenção e preocupação raramente transita do professor para o aluno? Só que o sistema, heterónomo, inflexível, centralizador e cristalizador, prefere manter as rédeas na mão, ao contrário de mostrar-se disponível para olhar de forma sistémica para além dos muros da escola. Não foi com espanto que li, que, da parte governamental, o "planeamento (do próximo) ano lectivo decorre sem falhas". Dir-se-á que a máquina está politicamente oleada e responderá "convenientemente", à semelhança de uma empresa de fornecimento de energia eléctrica. À escola bastar-lhe-á accionar o interruptor! Entretanto, paradoxalmente, falam da autonomia dos estabelecimentos de aprendizagem!

Ser criativo, inovador, dispor de uma consistente capacidade argumentativa, ser curioso e ter a noção que o manual é o menos importante, quando a possibilidade de aprender está espalhada por tantos meios, tecnológicos e outros, tal devia constituir o foco de toda a aprendizagem, jamais a padronização e cristalização do pensamento ("fixação funcional") que eu designaria por anestesia contranatura. Natural é a estimulação do questionamento, é colocar em causa, é dissecar a pluralidade de opiniões, natural devia ser a preocupação de inter-relacionar, induzir no entendimento das causas e nunca, mas nunca, em decorar centenas de respostas destinadas ao esquecimento após uma qualquer avaliação.

Porque isso é o que encontramos na vida real. Ela não nos pede respostas estanques, antes solicita conglomerados, partes distintas que se ajustam na resposta a uma dada situação. E isso trabalha-se no processo de aprendizagem. As próprias especializações assentam nesse pressuposto que devem excluir tanta tralha que nada acrescenta. Está em causa o conhecimento interligado e com robustez. A propósito, diz-nos Edgar Morin que a fragmentação de saberes constitui um erro, por isso propôs o conceito da complexidade. Sendo assim, é inexplicável a crónica indiferença dos governantes perante o pensamento de um dos maiores intelectuais do nosso tempo. "É preciso educar os educadores", sublinhou. É verdade! 


Sublinhou Mustafá Ali Kanso (1960/2017): "Numa primeira análise, a complexidade é um tecido de constituintes heterogéneos inseparavelmente associados: coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Na segunda abordagem, a complexidade é efectivamente o tecido de acontecimentos, acções, interacções, retroacções, determinações, acasos, que constituem o nosso mundo fenomenal". É isso. Portanto, "a sua principal proposta é a abordagem transdisciplinar dos fenómenos e a mudança de paradigma (...)".
 
De onde concluo que a Escola deve ser culta e deve estimular a cultura. A voz dos alunos dispensa uma escola redutora, fechada sobre si própria, preconceituosa e feita de crenças, que não consegue evoluir na missão que lhe compete, que não enxerga a vida, uma escola sem pensamento crítico, que sobrevive no meio de múltiplos medos, submetida aos princípios que enformaram o passado, uma escola que olha para ontem e não para o futuro, pedagógica e didacticamente parada no tempo, que não consegue perceber a população a quem se dirige, uma escola que não respeita sonhos e talentos, que não contribui para a felicidade de alunos, dos professores e que se divorcia da cultura geral e específica, repito, dizem os alunos, é perfeitamente dispensável.  É pela cultura e não pelas definições e respostas pré-definidas que vamos. A partir da cultura, no sentido lato do termo, tudo se agrega. Portanto, conhecimento é uma coisa, notas escolares outra, às quais, infelizmente, continuam a dar uma muito discutível relevância. Porque continuam a confundir avaliação com classificação, conhecimento com notas. Daí o surgimento de uma meritocracia balofa que traz para dentro da escola as taras da sociedade! 

Ilustração: Google Imagens.

Sem comentários:

Enviar um comentário