sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

A corrida aos € 20,00 e a realidade



FACTO

A Câmara Municipal do Funchal veio dar conta de um apoio de € 20,00 por cada atleta inscrito nos clubes cujas idades não ultrapassem os 15 anos. A autarquia calcula serem 5 000 os abrangidos o que perfaz um encargo do município de € 100 000,00. 

COMENTÁRIO 

Primeiro
Tenho, como é óbvio, o maior apreço pelos clubes e pelas suas dinâmicas realizadas através de dirigentes e treinadores que os vivem intensamente. Curvo-me perante o seu trabalho com muitos resultados nos planos nacional e internacional. Não é isso que está em causa. Em síntese, não me conformo é com as políticas de base que não têm em conta a realidade. 

Se consultarmos o Eurobarómetro, relativamente aos dados da prática física e desportiva de 2022, publicados em 2023, página 10, conclui-se que, em Portugal (incluindo as Regiões Autónomas), à pergunta: "com que frequência se exercita ou pratica desporto? Por "exercício" entende-se qualquer forma de atividade física (...)", 73% da população assumiu que "NUNCA"; 4% afirmaram praticar de "forma regular"; 18% com "alguma regularidade" e 5% "raramente". Portugal é o pior do ranking dos países europeus, seguido da Grécia (68%) e Polónia (65%). No lado oposto está a Dinamarca com 20%, a Suécia com 12% e a Finlândia com 8%, repito, os que assumem "nunca" praticarem qualquer actividade.

Nota
Entende-se por taxa de participação a relação entre o número de praticantes desportivos e uma dada população total considerada. 


Segundo
Deduz-se daqueles resultados do Eurobarómetro, que a estrutura organizacional de suporte à actividade física e desportiva está completamente errada. Não é função primeira dos clubes o crescimento do número de praticantes. É à Escola que pertence tal finalidade. A Escola deve ser a referência maior da quantidade, competindo ao clube a preocupação pela qualidade. 

Sendo assim, por princípio, não deve competir ao clube resolver o problema da formação em larga escala, ainda que a possa fazer atendendo a algumas especificidades. Genericamente, essa deve ser a responsabilidade da Escola.

A confusão desde sempre instalada, onde os vários actores se atropelam, baseia-se no facto de não existir uma assumida interface (complementaridade) entre a escola e o clube. Pagar aos clubes (como muitas autarquias fazem) para atenuarem um problema de pensamento e organização estrutural da escola, não me parece aconselhável. Os dois sistemas, o educativo e o desportivo, estão, claramente, de costas voltadas e sem norte, pela incapacidade de entendimento do que a um e a outro deve, estruturalmente, competir.

Vou mais longe. A Educação Física já teve o seu tempo (ver infografia e nota 1). Desde há muitos anos que se deveria falar, da base ao topo, de Educação Desportiva. Porém, a mentalidade que continua a prevalecer, baseada em programas curriculares e exigências completamente desfasadas do tempo que estamos a viver, só conduz(iu) à triste realidade de 73% assumirem que "nunca" desenvolvem qualquer prática. E se analisarmos ao pormenor, a taxa de participação fica-se pelos 22%, isto é, 4% regulares e 18% com alguma regularidade. Perante os dados do Eurobarómetro (e não outras estatísticas normalmente marteladas por duvidosos critérios), poderá ficar a pergunta: o que é que a Educação Física tem contribuído para uma prática física e ou desportiva portadora de futuro? Para vida quero eu dizer? Não é, seguramente, fechada na sua torre de marfim, impondo lógicas programáticas, testes, avaliações e exames que Portugal atingirá os patamares de uma excelência ao nível de uma prática entendida como bem cultural e de resultados que não necessitem da importação de estrangeiros.

Ora bem, impõe-se uma revisão completa desta mentalidade que atira dinheiro para cima de um problema, quando essa "estratégia" nada tem resolvido no plano do pensamento estrutural do funcionamento da sociedade em geral e da prática física e desportiva em particular. Diz-nos a História que não resolverá! Por outro lado é preciso ter consciência que os clubes já são apoiados pela entidade governamental (Plano Regional de Apoio ao Desporto - € 12.742.861,71 em 2023/2024). De acordo com a Demografia Federada, "na época desportiva 2021/2022 foram contabilizados 21 760 atletas federados, distribuídos por 70 modalidades desportivas, pertencentes a 143 clubes desportivos regionais​/sociedades anónimas desportivas (SAD) e a 29 associações regionais de modalidade e multidesportivas". Dos 21 760 praticantes (pressupõe-se regulares) 11 114 pertencem ao concelho do Funchal (51.1%). O resto é fazer as contas para se perceber, em média, o que significa o apoio de € 20,00 a menos de metade (5 000) dos praticantes do Funchal. Sendo assim, o que a autarquia, neste caso a do Funchal, devia assumir como responsabilidade e visão de futuro, mesmo contra a corrente de pensamento, era a da promoção da actividade física junto da população. E há tantas formas de a promover com os tais € 100 000,00 sem ter de recorrer a um ginásio em cada esquina. (Ver nota 2)

Posto isto, caro leitor, são 17:30 e está na hora de ir correr 40' (quase diários) e de complementar com mais uns minutos de musculação. Quero continuar a pertencer aos 4%, pela saúde e pelo desejo de contribuir para que essa percentagem aumente significativamente!

Nota 1
No livro Da Educação Física à Motricidade Humana (2002), editado pelo O Desporto Madeira, pode ler-se, na pág. 36, a seguinte passagem do Doutor Olímpio Bento: “(…) é, portanto, curial reconstruir esta área à luz de um lema como este: “escolarizar o desporto – desportivizar a escola e a vida”. Mas atenção, como também salienta o Doutor Manuel Sérgio, desportivizar a escola e a vida num projecto que combata uma prática que constitui “uma das grandes alienações do nosso tempo”. Isto é, “para além do desenvolvimento desportivo, é preciso criar um desporto ao serviço do desenvolvimento”. E a Escola, neste aspecto, é determinante essencialmente porque é futuro.

Nota 2
Complementarmente, em 2008, numa conferência no Funchal escutei as seguintes frases:
"Se a sociedade está errada o desporto não pode estar certo" - Doutor Manuel Sérgio.
"Um desporto ao serviço da mudança" - Doutor Gustavo Pires


Ilustração
Google Imagens e Proposta de um modelo organizacional do Professor Catedrático Jubilado Gustavo Pires, reproduzido no meu livro "Ano Europeu da Educação pelo Desporto", publicado em 2004.

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