sábado, 3 de fevereiro de 2024

Aos governantes: leiam, pensem um pouco e definam um projecto portador de futuro


Por 
Rui Correia
SIC

A escola em Portugal atravessa uma encruzilhada de que parece não querer sair. Os alunos acham que não estão a aprender nada. Os professores acham que não estão a ensinar nada. Os pais acham que a escola não lhes pertence. A esmagadora maioria dos agentes educativos deixou de acreditar num futuro viável para o sistema de ensino.


A Rita odeia a escola e é recíproco© Canva

Não andaremos muito longe da verdade se concluirmos que, em grande medida, esta desacreditação voluntária e voluntarista do sistema (porque tornou-se um desporto nacional rebaixar a escola pública) prende-se com a crescente inadaptação da escola ao tempo e ao mundo que a rodeia.

Mais professores para menos alunos


Toda a gente concorda que os tempos mudaram. O mundo mudou. Ninguém parece discordar que os miúdos são hoje completamente diferentes dos de há vinte ou trinta anos. É discutível. Mas é um facto que a voracidade da tecnologia e da semiologia mediática transformaram completamente os formatos e as ambições de conhecimento dos nossos jovens. Dos adultos também. Todos queremos aprender outras coisas e queremos conhecê-las de um modo completamente diferente daquele a que todos nos habituámos. A miudagem mais ainda.

Uma das muitas evidências desta transformação é que não há quem não exija – e bem - uma urgente redução do número de alunos por turma. Um horizonte que se torna cada vez mais mirífico por causa dessa cegueira antipatriótica que foi proibir durante anos a admissão de novos professores na carreira.

Turmas bastante mais pequenas do que as que temos são uma imprescindibilidade óbvia para todos os que alguma coisa conhecem do universo escolar actual. Este mundo em mutação provou-nos que não é pedagogicamente sustentável acreditar no sucesso escolar sem atender mais imediatamente aos interesses de cada indivíduo que deseje aprender coisas.

Mude-se os alunos


Diz-se que os miúdos estão menos respeitadores e mais desobedientes, menos interessados e mais agitados. Diz-se também que os professores não sabem manter a disciplina nas suas salas de aula. Diz-se ainda que os pais se converteram em vassalos dos egoísmos dos seus filhos. E, saltitando de frase feita em frase feita, tudo vai valendo e nada se altera, porque não se saberia por onde começar.

Há quem diga, sem rir, que é muito difícil “mantê-los calados e quietos durante 90 minutos”. E todos anuem. Como se estar “caladinho e quietinho” fosse o propósito de uma educação que se pretende “crítica e criativa”, como agora se diz muito que a escola deve ser.

A realidade é que estes pseudo-argumentos funcionam e proliferam como álibis da mediocridade. Enquanto os culpados desta era de decadência forem os alunos ou essa bugiganga chamada “sociedade”, então os demais livram-se de todo o mal. De toda a responsabilidade. A espada de Dâmocles impende sobre outrem e isso é suficiente para que se acomode na sua poltrona todo o cinismo e toda a hipocrisia. Parafraseando o poema do velho Brecht: se os alunos são o povo das escolas, dissolva-se o povo e eleja-se outro.

O Titanic escolar


A questão é que por todo o lado salta à vista que a escola perdeu o seu pé. A escola embateu num iceberg, de cujo tamanho nem suspeita, sente-se a si mesma como náufraga em mar alto, e insiste em tocar violino. Não aceita o mundo em que vive e anseia por desistir a tempo. O último que apague a luz. É iniludível que os modos de fazer aprender têm de reencontrar-se com o mundo lá fora.

A um mundo empolgado, criativo e provocante, responde a escola com uma obstinação academista, categórica e protocolar. Existem múltiplos formatos pragmáticos e envolventes que instigam efectivamente ao apreço pelo acto voluntário de querer saber.

Há enxames de profissionais sérios a estudar e aplicar estes novos formatos. Por todo o lado se divulgam práticas objectivas, concretas de tornar o estudo apetecível e congruente. É mesmo verosímil trazer a miudagem para o mundo lógico e sensorial do conhecimento. São aos milhões os professores, os alunos, os pais que tudo fazem para que as coisas caminhem nesse sentido. Mas deparam-se com a oposição obstinada de quem nada faz, nem quer que se faça. Instalou-se nas escolas um fingimento e um pretensiosismo educativo que busca a uniformização de tudo, a inflexibilidade nos modos e nos conteúdos; há uma escola jacente e apavorada pela mudança que impõe o seu autoritarismo sobre todos e que se entregou a um impasse anímico.


Uma greve existencial


Esta inércia instituída leva muitos professores e alunos à frustração, à solidão e à resignação. Num mundo que cresce a olhos vistos, sustentado na adaptabilidade e na elasticidade de todo o conhecimento, a escola parece viver numa espécie de greve existencial, de onde só se vê aquilo que já antes foi visto. É imprescindível não comer gato por lebre – e reconheça-se que, pedagogicamente, não faltam por aí gatos escondidos com o rabo de fora. Mas a prudência, indispensável em educação, não se confunde com a mais elementar renúncia de tudo o que fuja ao instituído. Existe um activo e incansável imobilismo nas nossas escolas que amesquinha e esboroa qualquer entusiasmo, qualquer prática didáctica que tenha o mais leve aroma a mudança.

O desânimo e o faz de conta são colossais. As estatísticas, os rankings e as “boas práticas” tornaram-se a sobremesa favorita da educação. Enquanto são servidas em bandejas cintilantes, continuamos na mesma.

Nos conselhos de turma ouve-se constantemente que “A Rita tem “potencial” mas parece que não quer saber de nada”. Depois segue-se um arrazoado sobre a família da Rita. É tudo verdade. Mas, ao mesmo tempo, é tão óbvio que os miúdos não se revêem minimamente nas orientações tradicionais das metodologias de ensino que incidem ainda poderosamente na ideia de uma prática de reprodução acrítica de conteúdos definidos de modo centralizado, sincronizado e uniformizado.

Sem uma resposta clara, plural, responsável e pragmática, para os desafios que os miúdos, os seus pais e os nossos dias nos colocam a todos, não há forma profissional de trazê-los para a luz que de nós esperam. Precisamos de uma escola eclética, híbrida, elástica, dobradiça e mais ansiosa por aprender do que por ensinar.

SIC Notícias

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