quarta-feira, 13 de março de 2024

As eleições e a Escola

 

Dia 10 de Março. RDP - Madeira, informação das 16:00. A jornalista Celina Faria faz um directo à saída de uma mesa de voto em Santana. Escuto: "Votei à conta de Deus e seja o que Deus quiser". Estava esclarecida e informada sobre as candidaturas? "Para eu votar escusa-me informar, porque sei em quem voto". Conhece alguns candidatos pela Madeira? "Não, não conheço nenhum. Olhe, eu não quero saber dessas coisas, não sei e nem caminho de casa". Mas mesmo assim nunca falta a um acto eleitoral (...) "Nunca faltei um dia. Enquanto puder virei à conta de Deus". Responde outra eleitora à pergunta da jornalista sobre os candidatos pela Madeira: "Não posso dizer o melhor ou o pior. Para mim são todos iguais. Ninguém me está dando de comer". Vem sempre acompanhada da sua filha para votar: "Venho, eu já não posso"!



Desde logo parabéns à jornalista que seleccionou e divulgou aquele que pode ser um retrato da fragilidade cultural de muitos cidadãos. Não é geral, eu sei, porque são milhares os que votam em plena consciência pelos valores que transportam e até distantes de qualquer ligação partidária. Mas, julgo que devemos admitir que existe muito voto sem uma leitura política minimamente elaborada. E este aspecto não está na idade dos eleitores. Passaram-se 50 anos de Abril. Mesmo um eleitor com 90 anos, tinha 40 na altura da Revolução. 

Não está em causa em quem votar, desde que esse voto se enquadre numa permissa de conhecimento, pelo menos básico, do "menu" que o exercício da democracia oferece aos cidadãos eleitores. Inclusive, sobre as figuras que pretendem que os represente. Ora, a sensação que tenho é que a muitos falta esse conhecimento e capacidade de discernir o que os partidos escondem para além do que apresentam na montra. Votam por impulso, por zanga, protesto, pelo massacre dos media e, imagine-se, "à conta de Deus", não por uma capacidade acrescentada consequência da interligação de múltiplos factores e indicadores. E já era tempo do povo demonstrar segurança e adultez nesta e em muitas outras matérias de cidadania. De ter um afinado sentido reflexivo e crítico.

É um problema grave e que se arrasta desde os anos 70. Continuam a persistir resquícios daqueles malvados 48 anos de ditadura. Eles estão aí. E a Escola, neste aspecto, não deu a quem por lá passou, essa capacidade, não partidária, sublinho, de possibilitar a formação global para o exercício da democracia. Há um enorme défice neste espaço, porque o pensamento existente está mais no cumprimento dos extensos programas das disciplinas, com a avaliação e com os exames, e não com a realidade da vida. A Escola ainda não tomou consciência que quando se vota, estamos globalmente a decidir sobre a economia, as finanças, a educação, a saúde, as questões sociais, a cultura, a agricultura, enfim, sobre todos os sectores, áreas e domínios da governação. O voto não deve estar na cor, mas no projecto de sociedade. Referi a Escola, mas dito de uma forma mais incisiva e abrangente, todo o sistema educativo relegou para plano secundário a aprendizagem do que é isto da política e dos actos eleitorais. 

Passei pela escola 40 anos. E continuo a acompanhá-la. Sempre senti que, genericamente, entre os professores, havia medo em provocar determinadas abordagens. A opção partidária de cada um também ali estava percentualmente representada. Medo de serem conotados com este ou aquele partido político, eventualmente, com perseguições e inquéritos disciplinares. Infelizmente é assim, sublinho, quando a cultura da escola devia assumir este e outros temas de uma forma natural, transversalmente aberta e sem rótulos. Senti que havia receio por algum encarregado de educação denunciar a aprendizagem para a vida real. Portanto, há uma iliteracia política, conjugada ao longo de anos, que já não dá para esconder e que nem as tais "aulas" de Cidadania e Desenvolvimento conseguiram disfarçar. Aliás, a vida real demonstra que tais "aulas" foram e são um logro. Curiosamente, ou talvez não, no plano conceptual a intenção programática está lá: "Capacitar para múltiplas literacias que permitam analisar e questionar criticamente a realidade. Avaliar e seleccionar a informação. Formular hipóteses e tomar decisões fundamentadas". Tudo no quadro do "pensamento reflexivo, crítico e criativo". No papel sim, as preocupações estão envoltas em celofane. O problema é a cultura da escola, talvez melhor dizendo, a cultura da sociedade. E se esta está doente a escola não pode estar melhor.

Ainda ontem, o Parlamento da Madeira, acolheu mais uma sessão do "Parlamento dos Jovens", sob o tema "Viver Abril na Educação - Caminhos para uma escola plural e participativa". Pergunto: há quantos anos se realizam iniciativas semelhantes? E quais os resultados? Mais: Abril na Educação? escola plural e participativa? Sejamos claros: cumprir um programa muito embelezado, ao jeito do toca e foge é uma coisa; outra, é escaqueirar mentes formatadas e reconstruí-las em liberdade de pensamento. 

E a liberdade de pensamento NÃO se avalia. É pessoal. "Os Direitos Humanos, Igualdade de Género, Interculturalidade, Desenvolvimento Sustentável, Educação Ambiental, Saúde, Sexualidade, Media, Instituições e participação democrática, Literacia financeira e educação para o consumo, Segurança rodoviária, Risco, Empreendedorismo, Mundo do Trabalho, Segurança, Defesa e Paz, Bem-estar animal e Voluntariado", repito, NÃO se avalia, antes investiga-se e debate-se profundamente em todos os momentos da vida escolar, de uma forma transversal que gere uma determinada cultura. Depois, livremente, cada um deve seguir o seu caminho e fará as opções que entender. Se assim não acontecer, uma parte da população continuará a votar "à conta de Deus e que seja o que Deus quiser".

Nos 50 anos de Abril não deixa de ser muito preocupante a sociedade que estamos a construir. 

Ilustração: Google Imagens.

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