terça-feira, 7 de março de 2023

TEORIAS CRÍTICAS E PÓS-CRITICAS DO CURRÍCULO


A propósito do livro apresentado, na passada semana, pelas professoras universitárias Liliana Maria Rodrigues e Jesus Maria Sousa, deixo aqui as intervenções produzidas no acto de apresentação.

Alguns autores, desta fase, acusaram mesmo a Escola de estar ao serviço da diferenciação das classes sociais, desenvolvendo atitudes de submissão, no caso dos filhos das classes trabalhadoras, e de atitudes de liderança, nos filhos das classes privilegiadas.



Caros Amigos,
Boa tarde a todos. Uma palavra de reconhecimento ao Carlos Diogo, à AAUMa e à Imprensa Académica da Madeira, que se disponibilizou a editar este livro, procedendo a toda a publicidade e à organização desta sessão. Um bem-haja pelo vosso profissionalismo.

Gostaria também de agradecer ao nosso colega e amigo de longa data, Carlos Nogueira Fino, pela apresentação e pela leitura pessoal que fez do que é esta obra, pequenina, é certo, mas inversamente proporcional à provocação que ela contém. O enquadramento, com a parábola de Harold Benjamin, sobre o Currículo Dentes-de-Sabre, coloca-nos a todos no registo que este livro exige: o do questionamento. Um muito “obrigada”, também, pelas palavras generosas sobre nós (não o merecemos assim tanto; merecemos um bocadinho, mas não tanto).

A todos os que aqui estão, importa dizer que nos sentimos muito sensibilizadas com a vossa presença. Gostaríamos também que soubessem que, e sem desprestígio pelos cargos e lugares que muitos de vós ocupam, cada um que aqui está, como nosso convidado, está pelo laço afetivo com uma ou outra de nós, ou com ambas. São pessoas que, em algum momento, se cruzaram nas nossas vidas e que nos deixaram marcas de respeito, estima e consideração. Convosco, aprendemos e crescemos, como Pessoas. Por isso iniciei com “Caros Amigos”.

Se, na Introdução deste Livro, dizemos que ele é especialmente dedicado aos nossos estudantes, pois “Teorias críticas e pós-críticas do Currículo” é o nome de uma disciplina do nosso Doutoramento em Currículo e Inovação Pedagógica, também é uma oportunidade de dar a conhecer ao público em geral, o objeto da nossa investigação, desconstruindo o que parece ser algo, um tanto ou quanto exotérico.
Foram muitas as pessoas que, de facto, quiseram saber sobre o que era isso. O Carlos Fino já deu o pontapé de saída.


Comecemos, então, pelo princípio: o que é o Currículo? Será um dado adquirido, com existência própria, à espera de ser descoberto? Ou é uma construção pessoal? Como em tudo nas ciências sociais e humanas, não há definições únicas da realidade, pois a realidade não existe, no seu estado puro. A apreensão da realidade é sempre subjetiva. Existe sempre alguém, um sujeito (subjetivo) que lê a realidade, modelada pelas suas perceções, conceções, representações e sua história de vida. In extremis,
podemos dizer que a realidade (neste caso, o currículo) não existe per se. Ele ganha existência porque alguém lhe conferiu significado. E aí nasce a teoria (seja ela teoria tecnológica, teoria crítica, teoria pós-crítica, etc.), até que venha uma outra que a deite abaixo. Aí está o princípio da falsificabilidade conforme Karl Popper, que diz mais ou menos isto: “um enunciado científico só é científico quando se provar que é falso”. A ciência tem, portanto, de ser humilde e relativa. Ela não dita verdades absolutas. E o mesmo acontece com as teorias do Currículo.

Segundo a tradição positivista e racionalista, a teoria é uma representação a posteriori da realidade, a partir dos dados empíricos observados. No entanto, a evolução das correntes de pensamento nos campos da filosofia, psicologia, psicossociologia, antropologia, etnografia e comunicação (para referir alguns apenas), tem demonstrado que existe uma mediação subjetiva muito forte entre a teoria e a realidade, promovendo o sujeito, desse modo, a elemento criador do objeto.

Por isso, retomando a questão do Currículo, e depois de expurgar e diferenciar o Currículo oficial, formal e expresso em leis, estruturas curriculares, programas de disciplinas, planos de aulas, etc., com conteúdos, cargas horárias, com umas disciplinas com mais peso do que outras, umas sujeitas a avaliação e outras não, etc., etc., […].

Como dizia, depois de diferenciar esse Currículo oficial do Currículo real (daquilo que acontece efetivamente na Escola), e do Currículo oculto (todas aquelas mensagens que são veiculadas sub-repticiamente e que são do foro do inconsciente, e que nos acompanham pela vida fora), podemos sintetizar que o Currículo é afinal “tudo o que se aprende na Escola, organizado por alguma entidade política, técnica, gestionária”.

Ora, durante muitos séculos o foco do que a Escola devia transmitir às novas gerações estava concentrado nos conteúdos, na matéria. O aluno devia saber muito de… (do que constava dos programas). Ao Professor, cabia a utilização das melhores técnicas e dos melhores métodos para fazer passar esses conteúdos. Ele seria um técnico de ensino, sem nunca se importar sobre o que estava a transmitir. Isso não era da sua responsabilidade, porque o Currículo era afinal o conhecimento considerado “socialmente válido”.

Ora, começa aqui o despontar das teorias críticas do Currículo, quando começa a questionar sobre o que é, afinal, conhecimento “socialmente válido”. Quem o define? Quem o determina? Conforme um autor que nos é muito querido (Tomaz Tadeu da Silva), as teorias críticas são teorias de questionamento, de dúvida, de desconfiança e de transformação radical. Por que se ensina isto e não aquilo? Quais os fins últimos do que se está a ensinar?

As teorias críticas do Currículo, emergentes na Modernidade, por isso, contemporâneas da Revolução Industrial, e preocupadas com a exploração de mão de obra barata em fábricas, enveredaram a sua atenção para a Escola enquanto promotora de reprodução social, tendo em vista a manutenção do status quo (os filhos dos pescadores serão pescadores, enquanto os filhos dos médicos serão médicos, conforme a máxima de Bourdieu e Passeron), considerando que ela, a Escola, era afinal um “aparelho ideológico do estado” (Althusser). A escolarização de massas, nesta perspetiva, visava adequar os alunos à nova ordem industrial.

Herdeiras das análises críticas levadas a cabo pela Escola de Frankfurt, onde pontificaram, nos anos trinta do século XX, pensadores críticos como Theodor Adorno, Walter Benjamin, Erich Fromm, Max Horkheimer, Jürgen Habermas e Herbert Marcuse, as teorias críticas do Currículo procuraram interpretar as razões profundas que subjaziam aos arranjos educacionais, prestando uma atenção redobrada ao chamado Currículo oculto. Viam o Currículo como resultado de determinada seleção feita por quem detinha o poder. O facto de selecionar, de entre um universo amplo, aqueles conhecimentos que constituiriam o Currículo, seria, por si só, segundo estas teorias, uma operação de poder.

Alguns autores, desta fase, acusaram mesmo a Escola de estar ao serviço da diferenciação das classes sociais, desenvolvendo atitudes de submissão, no caso dos filhos das classes trabalhadoras, e de atitudes de liderança, nos filhos das classes privilegiadas.

Mas, enquanto as teorias críticas centraram a discussão essencialmente no papel que a Escola tinha na reprodução social, cultural e económica, numa visão marxista de divisão de classes, as teorias pós-críticas, vieram alargar o campo da desconfiança e do questionamento a um novo contexto de pós-modernidade, segundo Lyotard [chamemos-lhe de modernidade tardia (cf. Giddens), modernidade líquida (cf. Bauman) ou hipermodernidade (cf. Lipovetsky)], extravasando a abordagem clássica e determinista, diria mesmo que fatalista, de causa-efeito (o indivíduo como resultado do meio social), para conferir ao indivíduo, o direito e a capacidade de afirmação da sua identidade, quer fosse ela de género, cor, etnia, religião, cultura de origem (mundo ocidental ou não, de matriz europeia ou não, colonizador ou colonizado, etc.). Isto é, as teorias pós-críticas do Currículo vieram lançar um novo olhar para as questões de hegemonia, da assunção da superioridade, para além das diferenças socioeconómicas, do período da Modernidade.

É o que este livro pretende: instigar o espírito crítico nos nossos estudantes, de maneira a não ficarem reféns de leituras simplistas da realidade, levando-os a ver mais além, de forma a intervirem de maneira esclarecida na arena política que é a Escola.

Nesta reflexão a duas, tive o privilégio de contar, para este exercício, com a Liliana Rodrigues, uma académica de alto gabarito, como todos sabem, com uma história de vida em favor da justiça social, em prol dos marginalizados da sociedade, que não diz Ámen a tudo e que, por isso mesmo, é intelectualmente deveras estimulante a quem com ela interage. Tem sido um prazer trabalhar contigo, Liliana.
Muito obrigada a todos.
Funchal, 1 de março de 2023
Jesus Maria Sousa

E todo este mundo tem de ser desvelado. Exposto. Pensado. É aqui que este livro pode ser, também, útil: ele ajuda a compreender a direção que o mundo segue e o papel que o currículo poderá ter na construção de uma sociedade mais digna, livre e responsável.



"Boa tarde a todos.
Gostaria de começar a minha intervenção agradecendo a presença ao Senhor Reitor da UMa, ao Senhor Presidente da ALM, ao Senhor Presidente da AAUMa. À Imprensa Académica pela aposta feita neste trabalho. Ao Carlos Diogo pelo caminho que temos feito. Ao Professor Carlos Nogueira Fino pela análise e debate feitos neste e noutros momentos (aproveito para lhe agradecer a amizade leal inabalável).

Ao meu bom amigo Nicolau que me fez este desafio em 2020.

A todos os amigos que hoje tiraram um bocadinho do seu tempo para estarem aqui, connosco. Todos os que aqui estão, estão porque, por diferentes razões, são importantes nas nossas vidas. Obrigada por isso.
Mas queria fazer um agradecimento especial à minha querida amiga Jesus Maria Sousa: sem ela este projeto teria sido um percurso solitário e muito mais centrado numa única visão e todos sabemos os custos do pensamento único.

Eu tento fazer aprender as Correntes Críticas do Currículo. A Jesus Maria as Teorias Pós-Críticas. À partida parece que perspetivas que se excluem. Mas longe disso. Elas se complementam e completam. Isso não significa ausência ou permanência de acordos.

Significa, nas palavras de Allan, que “para se chegar a uma verdade são precisos dois”. Não sei bem se chegamos à Verdade. Essa ideia será a perseguição que nós, enquanto seres humanos, fazemos ora pela ciência, ora pelo Senso Comum e, em alguns momentos, pela Fé. Raramente pela Filosofia, enquanto atividade que me é particularmente querida.

A Filosofia, inclusive do Currículo, exige tempo. Tempo que desperdiçámos a matar quanto o temos. Quem não conhece a expressão “estou a matar o tempo”? Tempo como um bem maior, na vida de todos os dias, mas também na vida académica.

Pensar este tema foi olhar para quem temos à nossa frente, os nossos estudantes, e tentar desconstruir as representações sobre a educação e sobre o currículo. Este desvelamento significou, muitas vezes, o embate do pensamento com outros pensamentos. O meu. Com o teu, Jesus Maria. Com o pensamento de muitos que aqui estão hoje.

E não tivemos qualquer problema em assumir a nossa janela ideológica ao longo dos textos que escolhemos e que adaptamos para servirem de reflexão, assim esperamos, dos que nos vão ler. Esse pensamento começou por ser uma intenção de materialização numa sebenta de estudo. Progrediu para aquilo que vos apresentamos hoje. Um livro. Uma reflexão a duas. Se calhar é uma reflexão com muitos mais.

Mantenho a teimosia de ter um mundo que resiste à desigualdade. Que resiste à mentira, à miséria e ao despotismo. Mas também temos o outro lado: o conforto do senso comum. Ele é o maior que todos os saberes. E muitas vezes, a capacidade plástica do homem não lhe retira o carácter de sujeito que se sujeita às relações de poder e de saber. Num mundo em rede, em que tudo se faz e tudo se diz, não é preciso muito para se ser um labrego de beca ou um erudito esfarrapado. É tudo uma questão de tique e de feitio.

E todo este mundo tem de ser desvelado. Exposto. Pensado. É aqui que este livro pode ser, também, útil: ele ajuda a compreender a direção que o mundo segue e o papel que o currículo poderá ter na construção de uma sociedade mais digna, livre e responsável.

Se é verdade que o currículo serve para formatar, não menos verdade será que ele pode emancipar. O currículo é aquilo que eu sou. Em que me tornei. Aquilo que cada um de nós aceitou ser. Começou na infância e seguiu-nos até à universidade. O seu impacto, em nós, vai acompanhar até ao fim da vida. Ele é a nossa identidade. O nosso BI, ou CC. As crianças e adolescentes das nossas escolas não podem continuar a ser vistos como os futuros trabalhadores de mercado que respondem às necessidades das empresas numa prestação de contas ao Estado. A educação é um empreendimento ético e o conceito de pessoa não pode continuar a ser expurgado do discurso científico dos curriculistas. Se assim for, no fundo, “o mundo torna-se num vasto supermercado” (Apple, p.59). O currículo não é um terreno recortado na geografia das disciplinas. Nem é o fim da educação. Mas é caminho e meta. É caminho que liberta ou que oprime. É meta que nos torna espírito ou espectro. É, meus bons amigos, porque tem de o ser, um ato de coragem: a assunção da liberdade. “Em vez de sermos vistos como pessoas que participam na luta para construir e reconstruir as nossas relações educativas, culturais, políticas e económicas, somos definidos como consumidores (….). Trata-se de um conceito (…) extraordinário, porque vê as pessoas como estômagos ou fornalhas” (Apple, 1999c, p. 71).

Pensar o currículo é um exercício de desconcertação, desconstrução e paciência. Mas é, também, um exercício de escuta. Até para essa escuta é preciso o Outro. Obrigada, Jesus Maria por teres estado. Neste livro, há essa grande vontade de inversão do ponto de vista natural e de negação do Senso Comum. Ou, pelo menos a franca tentativa de resistência. É da condição humana esta resistência, e tal como nos diz Lars Gustafsson: Recomeçamos. Não nos renderemos!
Muito obrigada

Sem comentários:

Enviar um comentário