domingo, 26 de março de 2023

"Um povo consciente é o maior medo de um governo mal intencionado"

 

Não tenho formação científica para tal caracterização: se se trata de um devaneio fantasioso, de um sonho paredes meias com um pesadelo, de uma tentativa de enganar incautos, sinceramente, não sei. Guio-me por factos e por aquilo que tem sido a minha vivência profissional e sobretudo pelo que leio e vou tentando estudar e compreender o que investigadores e autores vão escrevendo. E são tantos que não os consigo acompanhar. Mas as sínteses trago-as bem presentes.



Isto a propósito das palavras do Senhor Presidente do Governo Regional da Madeira por ocasião da inauguração do "Laboratório de Indústria 4.0.": "(...) O governo regional quer dotar os alunos do melhor ensino, o mais actual e de vanguarda para estarmos na linha da frente... no melhor do país e da Europa" (...) "para garantir às novas gerações uma vantagem competitiva", através de uma "educação de excelência e de uma educação de vanguarda" (...) "A ideia é termos os melhores alunos do País (...) este ensino que estamos a dotar a Região é fundamental para o desenvolvimento da nossa economia (...)".

Entretanto, a manchete da edição do Dnotícias de ontem dita que na Madeira: "2 em 3 alunos dependem da Acção Social Educativa". Para o poder político regional esta situação assume o significado de uma protecção exemplar no que concerne ao direito constitucional à Educação e, por via disso, à excelência de que falava o presidente do governo. Ora, não são necessários muitos estudos, basta ser clarividente e dispor de algum bom-senso, para perceber que há uma relação directa entre pobreza, capacidade de aprendizagem e construção do futuro, embora alguns estereótipos devam ser quebrados face aos aspectos multifactoriais que esta relação envolve (pobreza-aprendizagem). O que me parece fulcral é a necessidade de uma análise globalmente integrada de tal forma que o desejo de estar na "linha da frente", de ter os "melhores alunos do País" e a Madeira estar na vanguarda da Europa, não soe a paleio insustentável e até matéria de algum gozo.

A Região tem 32,9% de pobres ou em risco de pobreza, não esqueçamos! Na Escola, entre 41 500 alunos, 27 394 são apoiados, o que se resume a uma palavra: carências. Nos últimos anos, com esta política educativa do tipo "duracel", centralista, organizacionalmente sem qualquer assomo de inovação, não foi possível suster a emigração de 13 000 jovens, tampouco ser capaz de mobilizar cerca de 8 000 jovens que não estudam nem trabalham. Há, portanto, por um lado, razões a montante, onde sobressaem as políticas de família, as económicas e financeiras (fraca qualificação profissional e rendimentos baixos), por outro, a jusante, onde se enquadram a desadequada organização de uma escola para os tempos que os jovens estão a viver, os currículos, os programas e as gravíssimas questões de natureza pedagógica que tornam a escola desinteressante e conduzem a uma sucessiva perda de talentos e sonhos. A pouca nata que surge acaba por projectar a sua vida para além da Ponta de S. Lourenço. Porque há mais mundo! São tantos os exemplos em todos os sectores e áreas. Vão embora ou por lá ficam! 

Os governantes deviam ter presente que a pobreza (entre outros factores) afecta o cérebro, e ao contrário do que foi dito, aquela iniciativa isolada não me parece ser o caminho de uma economia consistente e portadora de futuro. A construção do futuro não é possível, com uma escola alimentada pelas traves-mestras da I Revolução Industrial, pintada de fresco com "manuais digitais" (nos Estados Unidos esta política está a ser abandonada, porque revela falta de inteligência, grosso modo, para além de outros problemas, meter os manuais em papel no formato digital), não é possível com meia-dúzia de designadas "salas do futuro" (!) com os naturais enfeites políticos de circunstância, consegue-se, sim, analisando profundamente os sistemas e planeando o desenvolvimento de todos os sectores da sociedade, de forma integrada, definindo as prioridades estruturais, garantindo a transformação graduada, a interacção, a integração, a optimização dos meios, auto-sustentação e a participação das pessoas. Consegue-se quebrando o ciclo da pobreza e das desigualdades, lutando, em sede de uma revisão constitucional, por um país com três sistemas educativos distintos, dizendo não ao permanente desejo de tudo controlar, portanto, apontando para uma escola geradora de cidadãos livres, responsáveis, cultos, autónomos, solidários e que valorize a dimensão humana do trabalho.

Li algures, creio que uma frase atribuída a Ivan Santana, cito de cor, que "um povo consciente é o maior medo de um governo mal intencionado". Porque a ignorância torna os seres dóceis! Há ali naqueles excertos do presidente do governo, que apadrinha estas políticas, uma grande dose de uma intenção que não é verdadeira. Como pode ele desejar "dotar os alunos do melhor ensino, o mais actual e de vanguarda para estarmos na linha da frente... no melhor do país e da Europa" (...) "para garantir às novas gerações uma vantagem competitiva", quando ele, enquanto líder deste sistema regional, permite que desde as primeiras idades matem os sonhos e os talentos de tantos jovens? 

Esta matéria dava para escrever um livro. Mas já existem tantos e tantos estudos. Bastará lê-los. Viagem, por favor, vão ver o que se faz de bom lá fora, tentem, sem imitações tolas, apenas por aproximação, uma espécie de "benchmarking" dos desempenhos de sucesso. Pesquisem. Tratem de saber as razões que levam a Finlândia a ser o país mais feliz do mundo (Portugal é o 56º). Invistam junto dos professores na qualidade e mudança de paradigma. Permitam que eles mudem a escola, que mudem o "chip" e sejam autores do sucesso na aprendizagem. Invistam na cultura, no desporto, na música, nas artes em geral e valorizem o pensamento independente, os valores e o trabalho em equipa. Tornem os jovens cidadãos do mundo, que dominem línguas, culturas e religiões. Tenham a coragem de fazer de todos bons falantes da língua portuguesa. Esqueçam essa treta de andar a decorar para esquecer após um teste. Mandem borda fora a aprendizagem segmentada (por disciplinas) quando a vida não são partes sem qualquer influência recíproca. Acabem com essa obsessão pela avaliação e com uma burocracia infernizadora sem qualquer sentido. Ponham um ponto final nas leituras obrigatórias, quando o que interessa é ler, ler, ler muito. Há milhares de títulos nas livrarias à espera de serem "devorados". Tenham presente Bhagavad-Gita ("Sublime Canção"), Século V aC: "Feliz o aluno a quem o Mestre agradece" e, já agora, que a "Educação não é uma corrida" como enalteceu a investigadora Deborah Stipek.

Tudo isto dá muito trabalho e leva alguns anos, pelo que a preparação para enfrentar a IV Revolução Industrial e as seguintes, terá de colocar hoje tudo em causa. A mentirinha pode dar jeito a um qualquer político num determinado momento, mas é paga a prazo e com juros! O desenvolvimento nunca será atingido através de um paleio mofento. Alvin Tofller, em 1984, há 40 anos, avisou que era pouco inteligente meter o futuro nos cubículos convencionais de ontem. Parece que alguns ainda não entenderam e daí uma propaganda balofa que nada tem a ver com o presente e com o futuro! Tem a ver com o exercício da política num determinado momento. E ser estadista é muito diferente de ser político.

Ilustração: Google Imagens.

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