segunda-feira, 18 de setembro de 2023

A Escola é muito mais que o ecrã


Li, com "paciência de Jó", a fuga para a frente do secretário regional da Educação, relativamente à implementação dos "manuais digitais" - Dnotícias / pág. 4 / 17.09.23. Ao Domingo, lá vem a encomenda sobre o que dá jeito abordar. É o dia que as pessoas mais tempo têm para ler, não é? Mas o contraponto não existe. Fala a solo, como se fosse o centro do conhecimento, habilidosamente fugindo às questões de fundo, aos contextos e sobretudo martelando estatísticas susceptíveis de conduzirem os incautos à admissão da sua verdade.



Ao longo da vida habituei-me a corrigir a minha opinião sobre diversos assuntos. Basta ser humilde perante a grandeza do conhecimento, partir do pressuposto que pouco se sabe, ler, ser curioso, estudar e compreender através do cruzamento do que os autores e investigadores trazem sobre um determinado assunto. Se juntarmos a isso uma dose de bom-senso e logo é possível colocar em causa o que antes se admitia como convicção absoluta.

De resto a condução da sociedade não pode ser norteada por "achismos". Se, na escola, é fundamental transmitir o princípio de que é preciso "aprender a desaprender para voltar a aprender", então, no exercício da política, muito mais.

É-me difícil aceitar que assim não seja e, por isso, coloco fora do processo aqueles que se fecham na sua torre de marfim, fugindo ao conhecimento, ao confronto das ideias e tornando a sua verdade numa verdade absoluta. Coitados dos que não admitem o "erro primeiro". Deviam ter presente, entre outros, Gaston Bachellard (1968): "A ciência é um discurso verdadeiro sob fundo de erro" (...) "as construções passadas devem ceder lugar às novas construções". Simples.

Nem de propósito, Francisco Laranjo, numa opinião publicada no Jornal Público (19.06.2023), sintetizou: 

"Numa altura em que as escolas adotam medidas de transição digital sem base científica que as valide, é fundamental recentrar a discussão na educação que queremos, e não nos dispositivos a usar".

Portanto, a questão não está sequer, como enalteceu o secretário regional, na não utilização dos "manuais digitais" no pré-escolar e no primeiro ciclo, mas em saber que educação queremos que seja portadora de futuro. O secretário já provou que NÃO SABE. Não sabe, porque a ela nunca se referiu, concretamente, sobre o projecto educativo a oito, doze ou dezasseis anos. Não se lhe conhece uma ideia para o sistema educativo. O que se constata é que as peças do edifício da educação são colocadas, desajeitadamente, sem uma ordem de precedência em função de um objectivo. Adiante.

Na utilização da tecnologia, o que hoje está a acontecer em função de muitos estudos é um "(...) processo que procura reparar os danos causados pela precipitada transição, na forma de investimento nas novas gerações". Não tem nada a ver com a Covid 19, como li. E este assunto, porque é complexo, deve ser debatido e nunca deixado nas mãos de uma só cabeça política e dos vendedores de tecnologia.


Adriaan Van der Weel, Professor emérito da Universidade de Leiden (Países Baixos), que há mais de uma década estuda a revolução digital, sintetizou: 

"(...) a tecnologia não é necessariamente equivalente a progresso. Temos tecnologias fabulosas, que fazem coisas espantosas e estamos viciados nelas, mas entre tecnologia e progresso nem sempre a relação é de um para um. Por isso, temos de ter alguma cautela quanto aos danos em certas áreas, nomeadamente em áreas tão sensíveis como a educação." (...) “O efeito do tempo passado em frente a um ecrã reforça a clivagem digital secundária (que é cognitiva)". 

Por outro lado, para Andreas Schleicher, director de Educação e Competências da OCDE, "quanto maior e mais frequente for a utilização da tecnologia digital na sala de aula, pior será o desempenho dos alunos no teste de leitura digital", referiu na sua apresentação Van der Weel. Se antigamente se acreditava que era preciso levar os ecrãs para as salas de aulas, para que as crianças socialmente mais desfavorecidas tivessem também acesso a estas ferramentas, essa percepção mudou. (Jornal Público)

Ora bem, o que a síntese de tudo isto quer dizer, é que ao invés de encher umas páginas com palavrinhas distantes da ciência, preferível seria que estudassem, visitassem e abrissem o debate no sentido de colher um melhor entendimento sobre esta matéria. Não basta colocar os manuais em papel dentro do digital, enfeitando-os, mas mantendo, grosso modo, o actual pensamento pedagógico. Julgo poder concluir que, teimosamente, o secretário quer entrar quando outros já estão a sair. Não é apenas a Suécia, mas dos Estados Unidos à Europa que as perspectivas estão a mudar. É claro que não está em causa a utilização da tecnologia no espaço escolar, mas o que se faz com ela. Já se fala num sistema hibrido, até porque, repito, estamos rodeados de tecnologia e seria um grosseiro erro ignorá-la. Mas fazer dos recursos tecnológicos uma panaceia para os males da Educação é que não me parece minimamente acertado. 

O ministro da Educação já recuou, mas, por aqui, segue-se em frente... sem medos!

O problema da Educação não se resume a ecrãs, há a questão curricular, a questão programática, a não segmentação das disciplinas, a existência ou não de turmas e de aulas, a arquitectura dos espaços de aprendizagem, a própria organização e autonomia de cada estabelecimento de aprendizagem, a excessiva burocracia que só inferniza e rouba tempo, a mudança de mentalidade, a adequada formação de professores, rigor, disciplina, eu sei lá o tanto que tem de ser mudado. Mas, para isso, são precisas humildade e coragem. 

Afinal, há medo em debater estas questões? 

Ilustração: Google Imagens.

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