terça-feira, 22 de novembro de 2016

EDUCAÇÃO 2021: PARA UMA HISTÓRIA DO FUTURO






Por
António Nóvoa 
 





“O tempo, como o mundo, tem dois hemisférios: um superior e visível, que é o passado, outro inferior e invisível, que é o futuro. No meio de um e outro hemisfério ficam os horizontes do tempo, que são estes instantes do presente que imos vivendo, onde o passado se termina e o futuro começa” (Padre António Vieira, História do Futuro, 1718)

Pensar o futuro é um exercício arriscado e, muitas vezes, fútil. Mas, apesar dos avisos, não resistimos à tentação de imaginar o que nos irá acontecer, procurando, assim, agarrar um destino que tantas vezes nos escapa. Como escreve Pierre Furter – a quem este ensaio é dedicado. Precisamos de vistas largas, de um pensamento que não se feche nem nas fronteiras do imediato, nem na ilusão de um futuro mais-que-perfeito. À maneira de Reinhart Koselleck (1990), interessa-me compreender de que modo o passado está inscrito na nossa experiência actual e de que modo o futuro se insinua já na história presente. – o horizonte não existe para nos trazer de volta à origem, mas para nos permitir medir toda a distância que temos a percorrer. O homo viator constrói uma casa apenas para o tempo necessário, pois é caminhando que ele se encontra e descobre o sentido da sua acção (Furter, 1966, p. 26). O texto está organizado numa lógica passado-futuro. Assinalo, simbolicamente, três datas que definem momentos de transição: 1870, 1920 e 1970. Procurarei contextualizar historicamente cada um destes momentos e explicar de que modo as questões que eles suscitam abrem, hoje, para evoluções contraditórias dos sistemas educativos. Na última parte, um tempo futuro, buscarei uma síntese destas evoluções, definindo as minhas próprias opções quanto ao cenário mais desejável para a EDUCAÇÃO 2021. 
O Padre António Vieira viveu grande parte da sua vida no Brasil, onde faleceu em 1697. A primeira edição da História do Futuro foi publicada em 1718. Pierre Furter foi o Professor que me iniciou nos debates sobre a utopia. Pensador notável, escreveu páginas de uma actualidade impressionante, designadamente durante a estadia no Brasil. O seu trabalho L’Amérique utopique, sobre a contribuição do pensamento utópico para o desenvolvimento da formação dos latino-americanos, mantém, ainda hoje, toda a sua frescura intelectual. 

PRIMEIRO TEMPO HISTÓRICO 1870
CONSOLIDAÇÃO E DIFUSÃO DO MODELO ESCOLAR 

Tomemos a data de 1870 como marco simbólico. Neste período, um pouco por todo o lado, assiste-se à consolidação do modelo escolar, isto é, de uma forma de conceber e de organizar a educação que, no essencial, chegou até aos dias de hoje. Não vale a pena explicar um “objecto” que é conhecido de todos. Mas é importante assinalar a sua permanência no tempo e o modo como resistiu às mudanças que tiveram lugar no decurso do século XX. David Tyack inventou uma expressão bem esclarecedora: The one best system. O modelo escolar impôs-se como “o único melhor sistema”, isto é, como a única forma concebível e imaginável de assegurar a educação das crianças. No final do século XIX, este modelo generaliza-se ao conjunto da infância, através da escola obrigatória, que se constitui como uma instituição central na afirmação dos Estados-nação. A difusão mundial deste modelo e, num certo sentido, a sua universalização confirmam a centralidade que ele adquire nas sociedades contemporâneas. A acção realizada por estadistas e educadores, médicos e professores, arquitectos e pedagogos, entre tantos outros, contribui para formatar um modelo que deve assegurar a consolidação da identidade nacional e a preparação para a nova sociedade industrial em espaços que preservem a saúde das crianças e lhes permitam progredir de forma sistemática nas aprendizagens escolares. A aquisição pelos professores de um estatuto profissional é um elemento central deste processo. Eles serão formados em escolas normais, designação que revela bem a lógica de homogeneização que prevalece na edificação dos grandes sistemas públicos de ensino. A expansão da “escola de massa”. É esta a única tradução possível do conceito, mais rico, de “mass schooling”. é um dos grandes acontecimentos que vai transformar as sociedades ao longo do século XX. Ao ganhar a luta secular contra o trabalho das crianças e dos jovens, a escola define novas formas de organização da vida familiar e social. É impossível pensar o século XX sem pensar a escola do século XX. 

Do passado ao futuro 

O sistema de ensino, público e homogéneo, está hoje a ser posto em causa por correntes e tendências que o consideram obsoleto e incapaz de se renovar. As críticas têm as mais diversas origens e alimentam-se de um sentimento de “crise”. É possível identificar, pelo menos, três cenários de evolução dos sistemas de ensino que, apesar de distintos, são portadores de visões semelhantes da educação. Não são hipóteses futuristas, na medida em que estão, já hoje, bem presentes na nossa realidade quotidiana. O primeiro cenário aponta para o regresso a formas de educação familiar. A partir de argumentos que vão desde a responsabilidade educativa primordial dos pais até à necessidade de preservar os valores de uma determinada comunidade local constroem-se propostas que põem em causa a dimensão pública da educação. A ideia de que cada família ou comunidade deve ter a sua própria escola, reservada aos seus e protegida dos outros, situa-se nos antípodas do projecto de uma escola pública que assegura a presença de todos e a construção de uma identidade partilhada. Uma das formas mais evidentes deste cenário é a expansão do ensino doméstico, em casa, que se vem desenvolvendo através de redes familiares, culturais e religiosas, com recurso às novas tecnologias. O segundo cenário baseia-se também na definição da educação como “bem privado”, mas insiste sobretudo nas vantagens do mercado da educação e na promoção de lógicas de competição entre as escolas. No limite, o Estado deveria abster-se de intervir no mercado dos serviços educacionais, limitando-se apenas: por um lado, a criar e divulgar indicadores de qualidade das escolas, permitindo assim a cada família fazer uma escolha informada da melhor escola para os seus filhos; por outro lado, a financiar supletivamente os mais desfavorecidos, por exemplo através do vale-educação. O terceiro cenário alicerça-se na importância das novas tecnologias. Imaginam-se formas totalmente distintas de ensino, que tornam dispensáveis as escolas tradicionais e que promovem a individualização do ensino. A educação pode acontecer em qualquer lugar e a qualquer hora, tendo como referência professores reais ou virtuais. Autores diversos assinalam a tecnologia como a chave para a educação do futuro: “As escolas, tal como as conhecemos deixarão de existir. No seu lugar, haverá centros de aprendizagem que funcionarão sete dias por semana, 24 horas por dia. Os estudantes terão acesso aos seus professores, mas à distância. As salas de aula passarão a estar dentro dos seus computadores”. Frases deste tipo ouvem-se todos os dias. É um futuro que os enormes avanços na produção de “ferramentas” interactivas de aprendizagem tornam cada vez mais possível. Estes três cenários são viáveis e há sinais claros da sua emergência nos últimos anos. Eles procuram combater a excessiva intervenção do Estado na educação e ultrapassar os constrangimentos do modelo escolar e de uma organização homogénea dos sistemas de ensino. Pessoalmente, receio que contribuam para acentuar, ainda mais, as desigualdades escolares e sociais, promovendo formas de “tribalização” da escola. Por isso, na última parte do texto, argumentarei em favor de um cenário que valorize a dimensão pública da educação, acolhendo, no entanto, uma diversidade cada vez maior de iniciativas organizacionais, curriculares e pedagógicas, rompendo assim com um sistema excessivamente burocratizado.

SEGUNDO TEMPO HISTÓRICO 1920 
EDUCAÇÃO NOVA E PEDAGOGIA MODERNA 

Em 1920 publica-se o livro-manifesto da Educação Nova, Transformemos a escola, da autoria de Adolphe Ferrière. É um marco simbólico da modernidade escolar e pedagógica. Entre 1870 e 1920 assiste-se a um avanço, sem precedentes, no desenvolvimento de ideias pedagógicas, que mobilizam os mais variados conhecimentos (psicológicos, sociológicos, médicos, filosóficos, etc.) no estudo da criança e na produção de uma “ciência da educação”. É difícil resumir, num parágrafo, as teses da Educação Nova. Mas não andaremos muito longe de uma definição se mencionarmos quatro princípios – educação integral, autonomia dos educandos, métodos activos e diferenciação pedagógica – e se lhes juntarmos a referência de Edouard Claparède à revolução copernicana que coloca a criança no centro, procurando assegurar uma educação à sua medida. A pedagogia moderna elabora e difunde socialmente modos de conceber a educação que se tornarão dominantes na sociedade do século XX. Todos, dentro e fora das escolas, somos herdeiros destas “teorias modernas da educação que vêm do centro da Europa e que consistem numa salgalhada surpreendente de coisas sensatas e de disparates, as quais contribuíram para revolucionar de alto a baixo o sistema de ensino sob a bandeira do progresso da educação” (Arendt, 1972, p. 229). O comentário de Hanna Arendt é, talvez, demasiado severo, mas nem por isso deixa de retratar bem a amálgama que dá pelo nome de Educação Nova. O conceito de educação integral é aquele que melhor simboliza este movimento e as suas desmesuradas ambições. A escola deveria encarregar-se da formação da criança em todas as dimensões da sua vida. A escola assumiu este programa impossível e acreditou que o podia cumprir. Ao longo do século XX, foi alargando as suas missões, ficando de tal maneira atravancada que perdeu a noção das prioridades. A realidade das últimas décadas não tem cessado de confirmar os perigos de uma “escola transbordante”. É certo que houve ganhos importantes, sobretudo no plano social, com a escola a compensar ausências da sociedade e das famílias, contribuindo para uma melhor integração das crianças e dos jovens. Mas quando tudo é essencial, torna-se impossível concretizar uma acção racional e inteligente. A escola desviou-se muitas vezes das tarefas do ensino e da aprendizagem para se dedicar às missões sociais. 

Do passado ao futuro 

A crítica principal que hoje se dirige à escola diz respeito à sua incapacidade para promover as aprendizagens, respondendo assim aos desafios da sociedade do conhecimento. Há quem vá ainda mais longe e defina a seguinte prioridade para a escola actual: “Fazer com que todos os alunos tenham verdadeiramente sucesso”. A frase consta das conclusões do debate sobre o futuro da escola, que teve lugar em França em 2003-2004. Em rigor, o que se nos coloca é um problema de sentido. Para que serve a escola nas sociedades contemporâneas? As respostas do passado já não nos servem e temos dificuldade em encontrar respostas novas. Vale a pena recordar o trabalho realizado pela OCDE sobre a escola de amanhã, no qual são apresentados seis cenários possíveis, agrupados em quatro tendências.

Statu quo 
1. Manutenção de sistemas de ensino burocráticos 
Reescolarização 
2. A escola no centro da colectividade 
3. A escola como organização centrada na aprendizagem 
Desescolarização 
4. Expansão do modelo de mercado 
5. Redes de aprendentes e sociedade em rede 
Crise 
6. Êxodo dos professores e desintegração do sistema 

Neste momento, interessa-me analisar os dois cenários que são portadores de uma lógica de reescolarização. O primeiro destes cenários – A escola no centro da colectividade – prolonga as tendências de transbordamento da escola que assinalámos anteriormente. A escola orientar-se-ia primordialmente para missões sociais, de apoio às crianças e às suas famílias, sobretudo no caso dos meios menos favorecidos. Sem negligenciar a transmissão do saber, a escola ocupar-se-ia de um conjunto de outras competências sociais e culturais, constituindo um lugar de referência para as comunidades locais. Inserindo-se numa tradição longa de ligação escola-sociedade, este cenário concede à escola um relevante papel assistencial e de compensação face à incapacidade das famílias para assegurarem as condições necessárias ao desenvolvimento das crianças. O segundo cenário – A escola como organização centrada na aprendizagem – chama a atenção para a importância do saber e da aprendizagem nas sociedades do século XXI. Trata-se de recusar a ideia de que a escola pode tudo, identificando os aspectos centrais, específicos e prioritários do trabalho escolar. O debate não é novo. Há mais de vinte anos, Daniel Hameline referia-se à necessidade de regressar, com inteligência, “ao que constitui a especificidade da escola no meio das instâncias múltiplas através das quais uma sociedade educa os seus membros” (1984/1985, p. 80). Em muitos países verifica-se um dualismo cada vez mais acentuado: as elites investem numa educação (privada) que tem como elemento estruturante a aprendizagem, enquanto as crianças dos meios mais pobres são encaminhadas para escolas (públicas) cada vez mais vocacionadas para dimensões sociais e assistenciais. É uma tendência indesejável para o futuro. Por isso, na última parte do texto, argumentarei em favor de uma escola centrada na aprendizagem, procurando assim inverter as tendências de transbordamento da escola. Mas sei que a defesa deste cenário só faz sentido se houver, simultaneamente, um reforço do espaço público da educação, tese que avançarei no ponto seguinte. 

TERCEIRO TEMPO HISTÓRICO 

1970 – DESESCOLARIZAÇÃO DA SOCIEDADE 1870 – 1920 – 1970: cem anos depois, o modelo escolar é seriamente posto em causa por uma série de movimentos e correntes que pugnam pela “desescolarização da sociedade”. Logo em 1966, Pierre Furter dedica um capítulo do seu livro Educação e Vida a esta problemática, concluindo com a seguinte definição: “Em resumo, constatamos que a Educação Permanente não pode ser reduzida nem a uma educação «extra-escolar», nem «complementar», nem «prolongada», nem «fundamental», nem tão pouco «de adultos», porque todas estas interpretações só vêem uma parte do problema. A Educação Permanente não é algo que se acrescenta a um sistema dado. Não é um novo sector, um novo campo. É uma nova pespectiva, que leva os educadores a redefinir toda e qualquer educação” (1966, p. 136). . A educação permanente é um dos conceitos-chave deste pensamento radical, que se elabora ao longo dos anos sessenta. Pierre Furter antecipa os escritos de Ivan Illich e de uma geração que vai produzir uma crítica forte à instituição escolar. O famoso relatório da UNESCO coordenado por Edgar Faure, Apprendre à être, publicado em 1972, continua esta reflexão procurando abrir a educação a todos os tempos e a todas as dimensões da vida. Há duas utopias que atravessam o pensamento deste autores: por um lado, a possibilidade de uma “educação desescolarizada”, isto é, de uma educação liberta das estruturas institucionais e baseada em redes informais de aprendizagem ou “teias de oportunidades”; por outro lado, a defesa de uma educação que não se limite, primordialmente, aos aspectos da formação profissional e que abranja as questões da sociedade, da cultura e do “aprender a ser”. Cedo se percebeu quão ilusórias eram estas utopias. Os discursos e as práticas da Educação Permanente, ao longo das décadas de setenta e oitenta, evoluíram, justamente, no sentido contrário. Em vez da desescolarização, assistiu-se ao triunfo de uma “sociedade pedagógica”, de uma sociedade que generalizou uma relação pedagógica com as crianças, os jovens e os adultos. Em vez de uma educação aberta sobre as dimensões da vida, assistiu-se à redefinição da Educação Permanente como “Educação e formação ao longo da vida”, conceito marcado pelo princípio da empregabilidade. 

Do passado ao futuro 

E agora? Podemos imaginar três cenários que, num certo sentido, se inserem na procura de alternativas para o modelo escolar e para a forma como ele se desenvolveu desde finais do século XIX. O primeiro cenário baseia-se na substituição das estruturas escolares pela valorização educativa de um conjunto de espaços e de instituições sociais. A ideia das redes de aprendizagem surge com naturalidade, reelaborada a partir de fugas para trás e para a frente. A “fuga para trás” revela-se no mito de um passado em que não havia escolas, no qual as pessoas se educavam ao ritmo da vida das sociedades, aprendendo de modo informal e convivial. A “fuga para a frente” alimenta-se sempre de uma utopia tecnológica, de um dispositivo que permita, enfim, colocar a aprendizagem e o saber ao alcance de todos. O cenário das redes tem vindo a tornar-se, de dia para dia, mais plausível. Do ponto de vista social, as sucessivas baixas de natalidade a par da melhoria dos níveis educativos da população adulta e do aumento significativo da esperança de vida libertam um conjunto importante de energias pessoais para missões de educação e de cultura. Do ponto de vista tecnológico, os espantosos desenvolvimentos da internet (inter-rede) convidam-nos a não excluir, à partida, quaisquer desenvolvimentos futuros. O segundo cenário está bem presente, hoje, nas políticas educativas em todo o mundo, com particular relevo para a União Europeia. Não é uma possibilidade, é sim uma realidade concreta. O conceito de lifelong learning (aprendizagem ao longo da vida) é considerado central para a definição das estratégias educativas. Contrariamente às intenções dos autores da Educação Permanente, a sua operacionalização tem-se feito, fundamentalmente, no quadro das políticas do emprego e da requalificação profissional. O termo empregabilidade, que ocupa um lugar central na famosa Estratégia de Lisboa, adoptada pela União Europeia em 2000, define os esforços educativos ao longo da vida essencialmente como uma obrigação de cada trabalhador para que se mantenha apto a desempenhar novas tarefas profissionais. A Educação Permanente começou por ser um direito pelo qual se bateram sucessivas gerações de trabalhadores; depois transformou-se numa necessidade ditada pelas mudanças no mundo do trabalho; e agora impõe-se como uma obrigação para conseguir um emprego digno. O conjunto dos sistemas escolares, desde a escola obrigatória até à universidade (veja-se o Processo de Bolonha), está a ser redefinido à luz destas perspectivas. O terceiro cenário aponta para a necessidade de redefinir a missão da escola, de maneira mais modesta, mas mais orientada do ponto de vista das aprendizagens. A escola deve libertar-se de uma visão regeneradora ou reparadora da sociedade, assumindo que é apenas uma entre as muitas instituições da sociedade que promovem a educação. Nesse sentido, pensar de outro modo o espaço público da educação, através de um aproveitamento das potencialidades culturais e educativas que existem na sociedade e de uma responsabilização do conjunto das entidades públicas e privadas. Por isso, a ideia de um novo contrato educativo, celebrado com toda a sociedade, e não apenas com a escola, que tenha como base o reforço do espaço público da educação, está no centro do cenário que defenderei na última parte do texto. 

UM TEMPO FUTURO 
2021 – AINDA SEM NOME 

Nesta última parte, seguirei os conselhos de Pierre Furter (1966), procurando introduzir, no presente, um futuro esboçado de maneira a dar a este presente uma forma que permita a eclosão do futuro. Mais do que uma antecipação, tentarei projectar cenários de futuro, aqueles em que me revejo de entre os muitos possíveis. Ao fazê-lo, estou a traçar caminhos e a definir orientações para a acção presente. 2021 é um tempo futuro, ainda sem nome, mas suficientemente perto para que nele possamos inscrever, desde já, as nossas preocupações. Nas páginas anteriores, avancei uma série de cenários, uns mais prováveis do que outros. No final de cada uma das três partes, em itálico, assinalei as evoluções desejáveis. Vou agora retomá-las e defendê-las, em conjunto, como programas para pensar e agir na campo educativo: 

1.ª Educação Pública, Escolas Diferentes 
2.ª Escola centrada na aprendizagem 
3.ª Espaço Público de Educação: Um novo contrato educativo 

1.ª Proposta Educação Pública, Escolas Diferentes 

Nos tempos actuais, talvez mais ainda do que em tempos passados, a educação deve definir-se como um “bem público”. As sociedades contemporâneas, fortemente globalizadas, vivem com enormes afastamentos e divisões no plano social, cultural e religioso. Como se a facilidade de comunicação planetária tivesse conduzido, paradoxalmente, a fechamentos nas formas de convivialidade. As ideologias da educação como “bem privado”, algumas particularmente sedutoras, contribuem inevitavelmente para a tribalização da sociedade. Claro que, no dia em que cada grupo social ou religioso tiver a sua própria escola, fundada em crenças e valores próprios, a acção pedagógica tornar-se-á mais coerente e harmoniosa. Mas, pelo caminho, perder-se-á uma das principais qualidades da escola pública, a possibilidade de instaurar narrativas partilhadas e culturas de diálogo. Numa reflexão notável, Arwin Appadurai alerta para os riscos do diálogo, mas explica que não temos alternativa, sugerindo uma estratégia de selectividade, de modo a que não nos sintamos obrigados “a partilhar toda a nossa humanidade em todas as ocasiões” (2006, p. 37). A escola é, justamente, uma das instituições onde esta partilha pode ter lugar, de forma prudente e selectiva, construindo assim uma base sólida e evolutiva para a construção de práticas de vida em comum. Mas a defesa de uma educação pública depende, hoje, de uma mudança dos sistemas de ensino de modo a possibilitar o desenvolvimento de escolas diferentes. Em vez da homogeneização que caracterizou a história do século XX, impõe-se agora uma abertura à diferença, sob todos os pontos de vista: 
a) liberdade de organização de escolas diferentes, por exemplo com base em contratos com entidades ou associações locais; 
b) liberdade na construção de diferentes projectos educativos, por exemplo com base em iniciativas de grupos de professores ou de associações pedagógicas; 
c) liberdade na definição de percursos escolares e de currículos diferenciados, por exemplo com base em acordos com sociedades científicas ou universidades. 
As entidades públicas devem manter, evidentemente, uma capacidade de contratualização e de regulação do sistema público de ensino. A abertura à diferença permitirá, também, modelos diversos de direcção e gestão das escolas, bem como uma maior responsabilização e prestação de contas por parte das diversas entidades. A inovação e a experimentação, devidamente avaliadas, deverão instituir-se como processos naturais. A abertura à diferença deve, também, traduzir-se numa maior liberdade de escolha dos estabelecimentos de ensino. As famílias e os alunos devem poder escolher a sua escola e, simultaneamente, participar na definição do seu projecto educativo. Mas sempre no contexto de uma dimensão pública. Quer isto dizer que os alunos podem escolher a sua escola, mas as escolas não podem escolher os seus alunos. Dito de outro modo, as escolas não devem usar esta liberdade para seleccionar socialmente os seus alunos, introduzindo factores de discriminação e de desigualdade no acesso ao serviço público de educação. A proposta que aqui se elabora retoma a aspiração de Claparède, “uma escola à medida de cada aluno”, mas define-a para além dos aspectos meramente pedagógicos (a aplicação de uma pedagogia diferenciada em função das necessidades de cada aluno) e projecta-a no plano da organização de escolas diferentes.

2.ª Proposta Escola centrada na aprendizagem 

A defesa de uma escola centrada na aprendizagem procura inverter a deriva transbordante de uma escola a quem a sociedade vai, progressivamente, atribuindo todas as missões. Não se trata de advogar o regresso a um qualquer passado mítico e, muito menos, de defender programas mínimos, o ensino do “ler, escrever e contar” ou as tendências do “back to basics”. Estes movimentos, que ganharam grande importância face à crise da escola e à incapacidade de resposta perante a massificação do ensino, baseiam-se na defesa do ensino tradicional e têm-se revelado de uma enorme pobreza teórica e prática. Trata-se, bem pelo contrário, de abrir novas perspectivas que coloquem a aprendizagem, em toda a sua riqueza, no centro das nossas preocupações. Há duas questões fundamentais a resolver. Em primeiro lugar, assegurar que todas as crianças adquirem uma base comum de conhecimentos; qualquer política educativa deve assumir este objectivo, não considerando o insucesso e o fracasso como fatalidades impossíveis de combater. Em segundo lugar, promover diferentes vias de escolaridade, percursos adaptados às inclinações e aos projectos de cada um; é preciso que as crianças e os jovens, sobretudo aqueles que vêm de meios desfavorecidos, reencontrem um sentido para a escola, pois só assim conseguiremos que “todos os alunos tenham verdadeiramente sucesso”. Para que a aprendizagem tenha lugar a escola terá de cumprir, escusado será dizer, algumas missões sociais e assistenciais. Os dramas da miséria, da fome, dos maus tratos, da gravidez precoce ou do consumo de drogas, entre tantos outros, impossibilitam um projecto educativo coerente. Mas assumir estas tarefas, provisoriamente, por imperativo ético, não é a mesma coisa do que defini-las como missões primordiais da escola, e este tem sido o erro maior da escola transbordante. Uma nova perspectiva de aprendizagem deve ser enriquecida com uma série de estudos e contributos que têm a vindo a ser formuladas em diversos campos científicos e culturais, mas que, em grande parte, não chegaram ainda às teorias educativas e, muito menos, às práticas escolares: os trabalhos recentes das neurociências sobre a importância das emoções, dos sentimentos e da consciência na aprendizagem; as pesquisas que têm posto em destaque o papel da memória e da criatividade; os desenvolvimentos da psicologia cognitiva, designadamente sobre as diferentes formas de inteligência; as teorias da imprevisibilidade sobre o carácter inesperado e até “desorganizado” de muitas aprendizagens e a importância de lhes atribuir sentido e significado; as consequências para a aprendizagem das novas tecnologias, das distintas formas de navegação e de processamento da informação; etc. A reflexão anterior levar-me-ia muito longe e obrigar-me-ia a iniciar um novo texto. Subjacente a muitas destas teorias está um princípio de complexidade, que rompe com grande parte das convicções do ensino tradicional; por exemplo, o princípio de que se aprende do mais simples para o mais complexo ou do mais concreto para o mais abstracto. A aprendizagem não é um processo linear e deve ser equacionada numa perspectiva multifacetada, bem distante dos simplismos que caracterizam tanto a escola tradicional como a pedagogia moderna. Promover a aprendizagem é compreender a importância da relação ao saber, é instaurar formas novas de pensar e de trabalhar na escola, é construir um conhecimento que se inscreve numa trajectória pessoal. Falar de um olhar complexo e transdisciplinar não é recusar o papel das disciplinas tradicionais, mas é dizer que o conhecimento escolar tem de estar mais próximo do conhecimento científico e da complexidade que ele tem vindo a adquirir nas últimas décadas. Simultaneamente – e este não é um aspecto menor – é necessário que as escolas se libertem das estruturas físicas em que têm vivido desde o final do século XIX. Nessa época, há quase 150 anos, os edifícios escolares foram pensados com grande ousadia e criatividade, mobilizando projectos e saberes de professores, arquitectos, higienistas, médicos, pedagogos e tantos outros especialistas. Hoje, é necessário mobilizar, com o mesmo vigor, novas energias na criação de ambientes educativos inovadores, de espaços de aprendizagem que estejam à altura dos desafios da contemporaneidade. 

3.ª Proposta Espaço Público de Educação: 
Um novo contrato educativo 

A frase À escola o que é da escola, À sociedade o que é da sociedade sintetiza bem as ideias que temos vindo a apresentar. A proposta anterior – Escola centrada na aprendizagem – só tem sentido se a sociedade se responsabilizar, progressivamente, por um conjunto de missões que, até agora, têm sido assumidas pela escola. É fácil enunciar, propositadamente sem qualquer ordem, algumas destas missões: a protecção do ambiente, a preservação do património cultural, o combate à droga e à toxicodependência, a educação para a saúde e a educação sexual, a preparação para lidar com situações de emergência, a promoção de comportamentos saudáveis, a educação alimentar, a educação para o consumo, o combate aos maus tratos e à violência doméstica, a educação para a cidadania, a prevenção da delinquência juvenil, etc. Sem ignorar o papel da escola em muitas destas missões, será que elas não devem ser assumidas primordialmente por outras instâncias sociais? Será que não devemos responsabilizar as famílias, mas também as comunidades locais, as associações culturais, as entidades laborais, as igrejas, os museus, as organizações científicas, os centros de saúde e os espaços artísticos e desportivos pelo cumprimento de boa parte destas missões? Não se trata de regressar ao debate sobre a relação escola-sociedade, mas antes de promover a construção de um espaço público de educação, no qual a escola tem o seu lugar, mas que não é um lugar hegemónico, único, na educação das crianças e dos jovens. A proposta que vos faço rompe com a tradição de ir atribuindo à escola todas as missões e inspira-se nas formas de convivialidade sugeridas por Ivan Illich. A defesa de um espaço público da educação só faz sentido se ele for “deliberativo”, na acepção que Jürgen Habermas (1989) deu a deste conceito. Não basta atribuir responsabilidades às diversas entidades, é necessário que elas tenham uma palavra a dizer, que elas tenham capacidade de decisão sobre os assuntos educativos. A operacionalização desta ideia obrigará a equacionar formas de organização dos cidadãos, para o exercício destas missões, designadamente através dos órgãos locais de governo. É nesta perspectiva que a proposta adquire todo seu sentido, abrindo para a possibilidade de um novo contrato educativo, cuja responsabilidade é partilhada por um conjunto de actores e de instâncias sociais, não ficando apenas nas mãos dos educadores profissionais. Se é verdade que a escola cumpriu, ao longo do século XX, um importantísimo trabalho social, não é menos verdade que hoje se torna essencial evoluir no sentido de uma maior responsabilidade da sociedade. Muitas zonas do mundo, e dos nossos próprios países, vivem ainda em situações de miséria e de pobreza, económica e cultural. Mas, de um modo geral, verificou-se uma enorme evolução nas qualificações escolares dos adultos. Durante muitas décadas houve um fosso geracional: os mais novos tinham habilitações académicas muito superiores aos mais velhos. Agora, pela primeira vez, há gerações adultas que têm habilitações académicas idênticas às das gerações mais novas, possibilitando-lhes assim uma intervenção educativa mais consistente. Paralelamente, tem aumentado a esperança e a qualidade de vida das pessoas idosas, bem como a sua disponibilidade para tarefas sociais e culturais. E as sociedades têm-se dotado de instituições de cultura, de ciência, de desporto ou de arte como nunca existiram no passado. Todas estas evoluções tornam viável um cenário que, ainda há pouco tempo, seria ilusório. Em sentido contrário, poder-se-á argumentar que, apesar destas evoluções, a “sociedade civil” revela sinais de uma grande fragilidade, designadamente pela corrosão de alguns laços e estruturas tradicionais. Mas este argumento apenas reforça a necessidade de reconstruir solidariedades, espaços de convivialidade, de vida social e cultural, que tenham como um dos pontos centrais a educação das crianças e dos jovens. 
*
São muitos os futuros possíveis. Mas só um terá lugar. E isso depende da nossa capacidade de pensar e de agir. Deixo-vos alguns contributos modestos, em torno de três propostas que poderão orientar programas de trabalho e políticas educativas. É preciso abrir os sistemas de ensino a novas ideias. Em vez da homogeneidade e da rigidez, a diferença e a mudança. Em vez do transbordamento, uma nova concepção da 16 aprendizagem. Em vez do alheamento da sociedade, o reforço do espaço público da educação. Estas propostas genéricas não se baseiam em situações concretas, nem em casos específicos. Procuram, sim, provocar um debate, que vai para além das fronteiras nacionais, abrindo novos horizontes para a educação. São ideias que só poderão ser úteis se forem devidamente contextualizadas e adaptadas à realidade de cada região e de cada país. Hannah Arendt escreveu que uma crise apenas se torna catastrófica se lhe respondermos com ideias feitas, isto é, com preconceitos (1972, p. 225). Tinha razão. O pensamento contemporâneo sobre educação tem de ir além do já conhecido e alimentar-se de um pensamento utópico, que se exprime “pela capacidade não só de pensar o futuro no presente, mas também de organizar o presente de maneira que permita actuar sobre esse futuro” (Furter, 1970, p. 7). 
Ilustração: Google Imagens.

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